quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A Dama do Lotação
Nelson Rodrigues


Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
— Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!

A SUSPEITA
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!
A CERTEZA
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!
A DAMA DO LOTAÇÃO
Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:
— Morri para o mundo.
O DEFUNTO
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.
Fonte:
www.releituras.com








"A DAMA DO LOTAÇÃO", DE NELSON RODRIGUES, NO CINEMA

"A dama do lotação", oitavo filme baseado em obra de Nelson Rodrigues, apresenta algumas particularidades. Pela primeira vez, um filme é inspirado em um conto do autor e também pela primeira vez o próprio autor escreve uma adaptação e faz os diálogos de uma de suas obras para o cinema. Dirigido por Neville Duarte D'Almeida, o filme tem como assistentes de direção Paulo Sérgio Almeida e Guará Rodrigues, que já trabalharam com o diretor em filmes anteriores. A fotografia é de Edson Santos e a cenografia foi criada por Gilberto Loureiro.

Sérvulo Siqueira

Av. Atlântica, Niemeyer, Jacarepaguá: as andanças de uma carioca sem destino
Meio-dia de um sábado. A equipe de filmagens se prepara para sair no ônibus construído especialmente para servir de estúdio ambulante do filme. O esquema das locações - lugares da cidade onde serão rodadas as cenas do dia - ainda não está determinado e na realidade isto só será feito nos próprios locais. À medida em que for circulando, a qualquer momento o diretor Neville Almeida pode mandar parar o ônibus e os planos serão filmados. A seqüência deste dia tem apenas dois atores: Sônia Braga como Solange, a dama do lotação, e Ney Santana como o continuo do escritório onde o marido de Solange trabalha. A seqüência começa quando Solange faz sinal para um ônibus no ponto. Entra no ônibus, senta-se ao lado de um passageiro, que no caso ocorre ser o contínuo, conversam, descem alguns pontos na frente e se dirigem para um plateau da Av. Niemeyer onde são rodados os últimos planos do dia.
O lotação - segundo o diretor Neville Almeida - "desloca a ação do filme, este veículo leva a personagem a todos os lugares. O filme é sobre transporte coletivo e os lotações cobrem todos os lugares. Mas a poética do nome é mais forte que a objetividade. E eu uso, dentro desta poética, todos os coletivos que têm lotação: o ônibus, o frescão e até mesmo o próprio lotação, porque ainda tem lotação no Rio. Na verdade, esta palavra é uma apropriação que vem daquele quadrinho: lotação esgotada, lotação 60 pessoas. Quando a Solange está em casa, ela está guardada em sua gaiola de ouro, mas quando sai e pega um lotação, ela pode parar em qualquer lugar; isto tem a verossimilhança que eu acho perfeita, que é o deslocamento.
Sônia Braga, cinco filmes já feitos e depois de rodar Dona Flor, acha que existem dois tipos de filmagem, do ponto de vista do ator:
- Uma é você filmar podendo no fim do dia voltar para casa e outra é filmar longe de casa. Sempre que você sai para uma locação, é uma vida nova que começa, que se cria. O teatro é uma coisa mais diária, mais do cotidiano, você interioriza mais o seu trabalho. Já no cinema, de repente surge uma situação nova na equipe que te conduz a uma emoção e ai você vai se modificando. Porque quem convive com a equipe é realmente o personagem e eu acho que é dai que vem a mágica do cinema.
Sobre seu personagem, Sônia diz que não gosta muito de falar:
- Eu trabalho de forma muito intuitiva, prefiro compreender vivenciando. Falar sobre o seu personagem entra naquele lado dele que você não deve conhecer. Fazer as coisas de maneira intuitiva ê a forma que eu tenho de preservar o sentimento delas. É por isso que é justamente da emoção do personagem que eu não gosto de falar. Porque quando você fala da emoção se sente meio ridícula, é como o processo que se faz em análise: você fala de sua emoção e vê até que ponto ela pode ir, consegue visualizar, entender, até torná-la ridícula.

“Toda mulher analisada passa a achar o marido uma besta, o pai um cretino e a mãe uma víbora" (Nelson Rodrigues, de um diálogo do filme)

Sobre o conto que deu origem ao filme, Neville diz:
- É muito pequeno, são apenas quatro páginas. O Nelson fez a adaptação para o cinema - o que nós chamamos argumento -, os diálogos e eu fiz o roteiro. Pelas indicações do conto, são pessoas de situação social muito boa, de alto poder aquisitivo, que não têm problemas imediatos. A visão do filme é de uma tragicomédia. O universo de Nelson Rodrigues tem todas as gamas de emoção. Eu procuro retratar este complexo universo que é completo, não se fixa em nenhum lado e tem todas as emoções: a alegria, a tragédia, o épico, o sórdido, o grandioso. Ele privilegia mais as pessoas que o mundo exterior, procura mostrar mais as emoções que existem no interior de cada pessoa. Existe uma atmosfera surrealista no conto que vai crescendo até o final, quando o personagem se transforma num morto-vivo. Mas o que eu acho importante é que é um filme brasileiro, feito no Brasil. Não é uma Belle de jour, eu não estou filmando com a Catherine Deneuve, estou filmando em Jacarepaguá, em Cascadura, na Av. Atlântica e a mulher é uma típica sul-americana. O filme é feito no Rio nos dias de hoje. O cinema penetra desde os seus ambientes mais sofisticados até os mais abandonados. A investigação dos personagens é a nossa investigação. O cinema brasileiro tem essa vantagem, ele é sempre um pouco documental também. Você pára em Jacarepaguá, começa a filmar os personagens e de repente aparecem centenas de figurantes. É o povo nas ruas se movimentando, aproveitando a oportunidade para aparecer ou fazer uma reivindicação, pedir dinheiro ou reclamar que a rua não é calçada etc. Neste sentido, uma coisa interessante do cinema brasileiro é a sua penetração no universo perplexo e transcendental da cidade.
Comentando os últimos filmes de que participou, Sônia Braga conta que sempre procurou – para enriquecer o seu trabalho de atriz - conversar com os autores das histórias que interpretou: Jorge Amado sobre "Dona Flor" e com Nelson Rodrigues sobre a "Dama".
— Com o Jorge, eu falei muito sobre vatapá, candomblé, sobre a Bahia e ele me passou um clima que é o clima do personagem. Você está conversando com o autor, já vivendo como o personagem, e isto já é estabelecido a priori. Então não há necessidade de ficar intelectualizando. E quando você fala com o Nelson sente que ele é uma pessoa muito especial, cada coisa que ele diz é muito especial, muito própria. Você já aceitou ser a personagem, então ele descreve todo um clima desta personagem, já está te olhando como a Solange, já te acredita como ela. Ele já te aceitou. Assim está formado o clima e um personagem vive mais de climas do que de assuntos. Ele sempre nasce na hora e depende de você e do lugar. Do Neville eu gosto muito como diretor, ele é bastante emotivo mas às vezes fica muito engraçado. Gosto de filmar em lugares mais abertos, mais populares. Acho que é mais da minha natureza. A gente filmou em lugares bastante finos e às vezes me incomodava quando o dono da casa vinha espiar. Tem um tipo que é mais curioso, mais bisbilhoteiro, eu prefiro este. O tipo crítico me inibe um pouco.


"Se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém mais falava com ninguém" (Diálogo do filme)

Viajando num carro com Nelson Rodrigues e indo ao encontro de Neville e Sônia, o autor da história nos fala sobre o conto e o filme:
- O conto é dominado pela realidade básica daquela família e tem um final infeliz. Uma tragédia de costumes em que o lotação é visto como um símbolo urbano carioca. O fato de não ter mais lotações não limita a obra, antes lhe dá uma dimensão ainda maior. Estão dizendo que o lotação vai voltar, e porque tudo que nós temos de bom sempre reaparece.
- Nelson, como foi que você fez a adaptação para o cinema?
- O teatro possui limitações que são próprias do seu destino. Já no cinema, depois de dez anos, tudo fica perto do delito atroz, o sorriso do bandido, toda a gesticulação. Tudo é aquela coisa espantosa. E a gente pensa: nós não somos assim. Mas, realmente, nós somos assim! Na adaptação eu busquei um grande poder interior, uma janela aberta para o cinema. Mas eu pensava mais em teatro.
- E os personagens, como você vê a Solange e o Carlinhos?
- Fisicamente, a Dama é uma Nossa Senhora de Praga com aquela vocação desesperada que só agora se apresenta em todo ô seu esplendor. Eu poderia chamá-la de mulher em todos os sentidos, com seu anseio de libertação, mas ao mesmo tempo rodeada de canalhas, e é por isso que ela vai ao psicanalista. A reação do marido, o Carlos, é a reação de todo homem e que existe em qualquer um de nós. Qualquer pessoa, mesmo corrompida, ainda conserva o mínimo de bondade e inteligência.
Sobre o diretor Neville Almeida, Nelson diz:
- É um homem de espírito moderno, sua sensibilidade é moderna e nisto ele é diferente de mim.
Concluindo, relembra uma conversa com Manuel Bandeira:
- O poeta, me dizia: "eu queria ver você escrever uma peça com personagens como todo mundo". E mal sabia ele, e todo o mundo, que os personagens das minhas peças eram como todo mundo. Ninguém viu o óbvio ululante.

"Depois do que ela própria fazia nos lotações nada mais a espantava" (Comentário de um personagem sobre Solange, "A dama do lotação")

- Tem uma coisa fundamental que eu gostaria de dizer: eu não julgo os meus personagens e só faço filmes com personagens que acredito. O filme tem mais a ver com a dama do que com o lotação, tem mais a ver com o casamento, com a relação do casal. Eu não inventei nada, estas coisas existem há mais de seis mil anos, são milenares, são circulares. Estas saídas, estes encontros furtivos, estas situações esdrúxulas, estranhas, a perplexidade da reação do marido, nada disto é inventado. A Sônia Braga tem a juventude, o talento e o mistério para fazer este personagem. E este mistério só em parte é desvendado, em parte ele continua porque é alma da mulher e a alma da mulher é sempre um mistério. (Neville D'Almeida).
Sendo essencialmente um trabalho coletivo, um filme depende basicamente da unidade de sua equipe de produção. Dos eletricistas - que cuidam das instalações de luz no estúdio e nas locações; os maquinistas que são encarregados dos carrinhos, trilhos e outros acessórios sobre os quais se instala a câmera, ao diretor de produção e seus assistentes - que fazem contato com os locais onde o filme será rodado, são responsáveis pela alimentação da equipe e cuidam da segurança da produção em cenas exteriores - o filme é um todo orgânico e seu bom resultado mostra o perfeito funcionamento dos vários setores.
Sonia Braga, com sua experiência como atriz em importantes produções do cinema brasileiro, fala sobre o trabalho de uma equipe em cinema:
- Alguém disse outro dia que se não existisse a kombi e a fita gomada não existiria cinema nacional. A partir disso você não pode acreditar em superprodução no Brasil. Disseram que "Dona Flor" era uma superprodução. Não era, eram condições mínimas de trabalho. Equipamento mínimo que um fotógrafo precisa para iluminar uma cena, por exemplo. É verdade que o bom do cinema brasileiro é que – pelo fato de não se ter tanta técnica quanto no americano – se pode criar muito mais. Mas o ideal seria que se tivesse muito equipamento e ainda assim se conservasse a capacidade de criar.
A seqüência do dia deste sábado está quase no fim. Entretanto, alguns planos demoram muito para serem filmados e a luz no belo plateau da Av. Niemeyer começa a cair rapidamente. A tarde já está acabando e é preciso filmar o mais rápido possível afim de evitar uma descontinuidade de iluminação. No último plano do dia, o casal (Sônia Braga e Ney Santana) se abraça e beija deitado na grama, enquanto a câmera gira em movimento circular concêntrica sobre seus corpos. Embora o 1? take filmado estivesse bom, o diretor resolve refilmar a cena para evitar a necessidade de uma volta posterior ao local. A luz já caiu bastante e, enfim, as seqüências do dia estão prontas. Amanhã, a equipe de "a dama do lotação" estará novamente rodando pelas ruas da cidade, desvendando novos recantos do Rio e novas emoções de sua personagem.
Alguns dias mais tarde, depois da uma filmagem com o personagem de Carlinhos (Nuno Leal Maia) em um luxuoso apartamento da Av. Atlântica, a equipe se dirige para um restaurante perto da Praça Tiradentes onde vai almoçar. Neville conta que comprou o conto de Nelson Rodrigues que deu origem ao filme há seis anos.
Depois de colocar o projeto, fiquei esperando uma oportunidade para filmar. Nesse tempo, fui amadurecendo a idéia e acho que o filme acabou sendo feito na hora certa, no momento mais oportuno. Agora, na filmagem, tudo está sendo feito, tudo está se compondo, ainda estamos ajuntando as partes. Ainda não temos uma idéia de conjunto, só temos uma idéia da acumulação das coisas que já foram feitas. No momento a gente ainda está muito envolvida no plano, em cada dia de filmagem. E quando você está filmando é mais difícil ter uma visão de conjunto. Isto é interessante porque a visão de conjunto você tem antes de começar o filme. Depois, quando se está filmando, esta visão vai se desintegrando nas várias partes do filme e, no final, ela volta a ser integrada outra vez. Ai você reencontra a linha daquilo que tinha pensado antes.
As filmagens já foram encerradas e o filme passará agora para a fase de montagem. Outros atores de destaque são Roberto Bonfim, Paulo César Pereio e Jorge Dória.

Publicada no jornal O GLOBO em 17 de abril de 1978.
Sérvulo Siqueira

Um comentário:

  1. Muito boa a reportagem sobre o filme "A Dama do Lotação". O autor, Sérvulo Siqueira, acaba de lançar um livro sobre outro aspecto histórico do cinema brasileiro: o inacabado filme realizado por Orson Welles em 1942 no Brasil. Quem estiver interessado, pode visitar a página http://www.guesaaudiovisual.com/OWFragmentosCap1/LivroOrsonWelles.htm

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