quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A música na ditadura militar brasileira - Análise da sociedade pela obra de Chico Buarque de Holanda
Por: Carina Gotardelo Ferro da Costa*
e Marcos Julio Sergl**

"A minha gente hoje anda/falando de lado/olhando pro chão"
(Chico Buarque de Holanda, "Apesar de você", 1970)

Resumo

Muito se fala sobre a ditadura militar brasileira, mas pouca certeza se tem do que realmente acontece nesse período. Partindo do princípio da arte como reflexo da sociedade, a presente pesquisa busca identificar como é a sociedade nesse período (1964-1984), bem como perceber o processo de crítica da classe artística, por meio da análise de mensagens subliminares embutidas nas canções de protesto de um compositor específico, ícone na luta contra a ditadura, Francisco Buarque de Holanda: o Chico Buarque.


1. Chico Buarque de Holanda e o golpe militar


No término da Segunda Guerra Mundial, o governo getulista chega ao fim no Brasil. A tradição autoritarista trazida por Vargas dá espaço a um período curto de liberalismo. É nesse momento que nasce Chico Buarque de Holanda.
Posteriormente, o governo de Juscelino Kubitschek traz uma política "desenvolvimentista". A inauguração de Brasília, em 1960, marco desse governo, traz à tona essa ideologia, que dá origem à produção de novas condições para a criação artística no país. Vemos surgir diversos artistas vanguardistas, como, por exemplo, os cineastas Glauber Rocha e Ruy Guerra, a bossa nova de João Gilberto e a arquitetura inovadora de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, idealizadores da nova capital brasileira.
Apesar do espaço aberto pelo fim do regime de Getúlio, porém, Chico pouco aproveita esse período, pois, quando desperta, aos 20 anos, para uma vida intelectual e artística conscientes, tem-se em 1964 o golpe militar, que dá início a uma ditadura que dura mais de 20 anos.
A década de 60 é marcada por efervescência no campo político-social do país. Uma vontade de participar ativamente da política interna é despertada em diversas camadas da sociedade. Os movimentos estudantis são intensificados e passam a agir junto ao povo. Podemos tomar como exemplo os Centros Populares de Cultura (CPCs), da União Nacional dos Estudantes (UNE). Destacamos ainda a mobilização do operariado e dos agricultores, que constituem o movimento sindical em torno da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e as Ligas Camponesas. "Tudo isso expressava grande inquietação social, em parte explicada pela situação crítica da economia do país, e que, na esfera política, se refletia em episódios tensos" (bolle, 1980, p. 93).
Dois momentos marcantes dessa época são, respectivamente, a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e a posse de seu vice-presidente João Goulart, com idéias de reformas sociais e econômicas que deram origem ao golpe de 1964.
O governo de Goulart é marcado pelo agravamento da crise econômica e pela intensa vida política, bem como pelos conflitos sociais e políticos no país. Diante disso, alegando combater a subversão e assegurar a ordem democrática, os
militares tomam o poder na noite de 1º de abril de 1964. O que tem tudo para ser mentira, torna-se uma verdade que modificaria radicalmente as estruturas do país durante os anos seguintes.
Os efeitos em termos de censura cultural não se fizeram sentir imediatamente. Os estudantes e artistas não são reprimidos imediatamente, e é, aliás, após 1964 que as atividades artísticas, principalmente no teatro, intensificam-se. Surgem grupos como o Teatro de Arena e o Oficina, acentuando um caráter nacionalista na arte.
2. A sociedade se divide...

Após os primeiros anos, o governo militar torna-se mais rígido. Apesar das censuras impostas pelos primeiros presidentes, é no governo de Costa e Silva que a ditadura realmente se consolida. Com a outorga do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o país vê-se diante de uma política para aqual "tudo é proibido". As manifestações estudantis aumentam, tornando claras a inquietação política e a insatisfação da juventude politizada. Nesse período, entre 1965 e 1968, o movimento musical é intensificado com a chamada Era dos Festivais. As canções de protesto adquirem importância, ocupando o papel de contestadoras da sociedade. Muitos são perseguidos pela ditadura nessa época. É no governo de Medici, contudo, que essa perseguição torna-se mais presente no cotidiano dos cidadãos. Lançando a "política do desaparecimento", Medici inicia uma verdadeira "caça às bruxas", prendendo, torturando e exilando muitas pessoas. A censura é instaurada no teatro, na TV e no cinema, na música e até nas universidades. Isso elimina quase que totalmente a possibilidade de germinar uma cultura crítica. Podemos dizer que "o AI-5 foi um golpe dentro do golpe, um golpe de misericórdia na caricatura de democracia. Caímos, aí sim, na clandestinidade" (gabeira, 1984, p. 119).
Diante desses fatos e com o endurecimento cada vez maior da censura, a sociedade vê-se dividida em dois pólos: um defendendo a luta armada e outro, a diplomacia. O primeiro, dizendo ser possível a redemocratização sem o uso das armas, usa o bordão "o povo unido derruba a ditadura". O segundo toma o caminho oposto e busca exemplo em Che Guevara e na "guerrilha urbana", usando como símbolo uma frase contestatória à primeira, dizendo que "o povo armado derruba a ditadura". Constantemente essas frases vêm juntas em manifestações. A verdade é que, mesmo seguindo caminhos diferentes, ambas as vertentes são contestadoras do regime, portanto consideradas "subversivas". Isso faz com que tanto um grupo quanto o outro sofram com as medidas tomadas pelos militares. Uns são mortos, outros exilados, presos, torturados ou, simplesmente, desaparecem.

3. o artesão da linguagem x o poetapopular
Todos os acontecimentos acima citados acabam por se refletir no setor cultural. A exemplo do que ocorre entre os "guerrilheiros" e os "diplomatas", os artistas também se dividem, tomando posições diferenciadas. Especificamente na música vemos bem clara essa divisão. De um lado, tem-se aqueles que buscam um afrontamento direto ao regime, questionando e criticando a realidade da sociedade. De outro, encontram-se os que usam os recursos da linguagem para esconder suas mensagens de modo subliminar nas canções. Os primeiros sendo ovacionados pelo público e duramente reprimidos pela censura, os segundos, muitas vezes, sendo reprimidos por ambas as partes. Nesse contexto, citamos dois grandes compositores, ícones na época e causadores de grande polêmica: o artesão da linguagem (bolle, 1980, p. 101), Chico Buarque de Holanda, e o poeta popular, Geraldo Vandré.
De um lado vemos um garoto de classe média alta, conhecedor da língua portuguesa a fundo e apreciador das palavras, com fama de bom moço e conhecido por seu lirismo e seus belos olhos verdes. De outro, o cantor popular vindo da Paraíba para o Rio de Janeiro, falando de forma clara e objetiva. É nos Festivais da Canção, citados anteriormente, que encontramos o palco para suas "disputas". É no ano de 1966, no II Festival de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record, que esses dois célebres cantores encontram-se em uma final pela primeira vez. Chico Buarque apresenta sua música "A banda", interpretada juntamente com a cantora Nara Leão, e Vandré concorre com "Disparada", interpretada por Jair Rodrigues, Tri Maraiá e Trio Novo. Para desgosto do público, que não vê "A banda" como uma canção de protesto, os cantores dividem o primeiro lugar do Festival.




Vandré concorre com a canção "Pra não dizer que não falei das flores" ou "Caminhando", que se torna o hino da resistência à ditadura. Há contestação do público, que, apesar do protesto contido em "Sabiá", vê a música de Chico como algo alienante.
Se analisarmos as quatro músicas citadas acima, vemos que todas possuem uma forma de protesto, porém com muita diferença entre Chico e Vandré.
Em "A banda", é possível notar o recorte de uma cena da vida urbana. Nessa música, Chico nos mostra a dureza da vida da "gente sofrida" que "despediu-se da dor". Ao mesmo tempo, Chico nos mostra a desesperança presente na sociedade da época, fala-nos de pessoas tristes, amedrontadas e solitárias e da clausura de cada pessoa por causa do regime militar. A canção é uma sobreposição de esperança e desesperança. A primeira, presente nos trechos iniciais da música e, a segunda, presente durante toda a canção e mais explicitada na última estrofe: "Mas para meu desencanto o que era doce acabou/tudo tomou seu lugar depois que a banda passou/e cada qual no seu canto, em cada canto uma dor/depois da banda passar cantando coisas de amor".
Em "Disparada", Vandré nos mostra alguns trechos muito mais agressivos, apesar do uso da linguagem poética. Suas mensagens são bem mais claras do que as de Chico em "A banda". Podemos dizer que a canção de Vandré é uma afronta direta ao governo e às torturas a que alguns eram submetidos pelos militares. Fala também da consciência política, de um despertar para o que ocorre na sociedade e da censura sofrida. Essas visões ficam claras, principalmente, nos seguintes versos: "Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo/E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando/As visões se clareando, até que um dia acordei/Então não pude seguir valente em lugar tenente/E dono de gado e gente, porque gado a gente marca/Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente/Se você não concordar não posso me desculpar/Não canto pra enganar, vou pegar minha viola/Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar". Na última frase de sua canção podemos notar uma crítica clara ao governo e a política militarista: "Laço firme e braço forte num reino que não tem rei".
Em "Sabiá", Chico fala do exílio e da vontade de voltar para a terra. Ao mesmo tempo em que mostra um saudosismo, faz uma crítica à sociedade, mostrando que tudo de que ele sente saudade nesta terra não existe mais. Podemos notar isso na seguinte estrofe: "vou voltar, sei que ainda vou voltar/vou deitar à sombra de uma palmeira que já não há/colher a flor que já não dá". Já em "Caminhando", Vandré fala de forma explícita do governo. Cita ainda a luta armada e a imobilidade das pessoas que defendem a diplomacia, podemos notar ainda uma crítica aos movimentos que pregavam "a paz e o amor", mostrando que de nada adianta "falar de flores" àqueles que atacam com armas. Sua canção é um protesto escancarado, ao contrário do de Chico, e torna-se o hino da resistência. Podemos notar esse protesto nos seguintes trechos: "Há soldados armados, amados ou não,/quase todos perdidos de armas na mão,/nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição: de morrer pela pátria e viver sem razão./vem, vamos embora, que esperar não é saber,/quem sabe faz a hora, não espera acontecer", ou ainda no próprio título da canção "Pra não dizer que não falei das flores/Caminhando".


Vemos então as diferenças entre Chico e Vandré. Apesar de ambos utilizarem a linguagem popular de forma poética, o protesto de Chico, inicialmente, é mais sutil que o de Vandré. As canções de Vandré são claras e objetivas e mais simplificadas que as de Chico, tanto na linguagem quanto no arranjo musical.
Por causa de seu protesto sutil, Chico é fortemente criticado, acusado de ser lírico e ter letras alienantes. Essas críticas levam o compositor, mais tarde, a dar "um chute no lirismo" e "um tiro no sabiá", compondo canções mais diretas. Tal atitude lhe rende a proibição de algumas de suas músicas, uma vasta ficha na Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), por ser subversivo, e, mais tarde, com o pseudônimo de Julinho de Adelaide também teria outras músicas proibidas pela censura. O fato de Chico ter um espantoso domínio da palavra pode ser um dos fatores que influenciem nessa sofisticação e na sua sutileza. O próprio compositor declara: "Tudo o que é ligado à palavra me interessa" (bolle, 1980, p. 97).
Às críticas feitas por ser de uma classe mais alta, Chico responde dizendo que:"O artista popular revolucionário poderia ser o indivíduo que mora na Zona Sul, trabalha e ganha dinheiro, tem mãe, mas vê que a favela é logo ali e que na porta de seu edifício dorme um mendigo adulto. Sente-se, então, compelido a renegar sua existência de ‘burguês de doirada tez’ para juntar-se ao povo. Sua opção é moral. Sua ação política é uma questão de honra e de doutrina" (holanda, 1981, p. 25).
Apesar de todas as críticas recebidas, Chico é um dos poucos compositores que resgatam gêneros tradicionais, utilizando-os em suas canções. Apesar de muito criticado pelo público "militante", até mesmo algumas músicas consideradas líricas trazem algum tipo de protesto embutido em suas letras. Afinal, como é possível falar de "uma gente sofrida" que "despede-se da dor pra ver a banda passar tocando coisas de amor" sem falar do povo?
4. o reflexo da ditadura na arte e na sociedade
O fato de os compositores, por sua produção musical, buscarem um novo meio de demonstrar os seus sentimentos e revolta em relação ao momento pelo qual passa o Brasil, trazendo seus protestos não apenas em letras, mas também na busca de autenticidade, resgatando nossas raízes, presentes nas melodias que apresentam, faz com que a censura endureça ainda mais. Aqueles que criam letras mais ousadas e "provocativas" ao governo tornam-se símbolos de subversão para os censores. Esse trabalho dos censores influencia ainda mais o modo de os músicos comporem suas letras e melodias.
Disso nos fala Chico Buarque, relatando que:"O artista, com o trabalho da censura, corre o risco de ter um álibi até para se esforçar menos. Ou o artista é até obrigado a fazer ginásticas incríveis, usar de metáforas às vezes que, com o passar do tempo, parecem ridículas. A gente olha para trás e vê coisas que estão escritas de certa maneira e foram porque na época a gente teve dificuldade de conseguir realizar. Era a pressão que atuava sobre a criação, no ato mesmo da cria-ção. Depois passa o tempo, e o texto fica vazio, a forma mesma é alterada na medida em que você procura mil artimanhas para tentar passar uma idéia. No final das contas, não passa, só passa para os iniciados" (khéds, 1981, p. 178).
Assim, chegamos ao fim da década de 70 com um imenso empobrecimento cultural. Percebe-se que os valores ainda são os mesmos dos anos 60. Os artistas não podem expressar-se. Durante a ditadura, porém, os músicos encontram nas canções de protesto o meio para defender seus direitos e denunciar as mazelas de uma população que vive "confinada" por leis que a impedem de defender seus ideais. Isso faz com que a produção musical seja muito intensa, ao contrário do que ocorre em outros setores, como, por exemplo, no teatro, que se vê obrigado a reproduzir peças antigas para não ser censurado, usando as metáforas como principal arma, mesmo assim ainda sofrendo grandes represálias. No cinema, alguns filmes são proibidos de serem exibidos e só voltam a ser apresentados após a "redemocratização" do Brasil. Literalmente, os artistas ficam fadados ao silêncio.
Economicamente, temos uma inflação galopante, arrocho salarial, proletarização de classe média, pauperização da renda em níveis assustadores, violência. Se no início da década vê-se a violência política, agora deparamos com a violência econômica, que acaba por desencadear a violência social, à qual nos "acostumamos" a assistir, refletida na sociedade atual, como, por exemplo, desemprego, assaltos, roubos, crimes e marginalização do menor.
5. conclusões pessoais
Ao analisar as obras de Chico, é inegável que vemos em suas composições certo requinte na linguagem e na melodia, dado pelo modo com que utiliza as palavras e diversas expressões populares e o modo pelo qual combina com maestria os acordes da canção. Até que ponto, porém, esses recursos linguísticos são entendidos pela grande massa e qual o tipo de público que Chico busca atingir?
Partindo da análise dessas canções, bem como do próprio autor na história, é possível questionarmos o entendimento de suas canções. Se o compositor buscou fazer com que a grande massa, e não apenas os letrados, se mobilizassem com suas canções de protesto, podemos levantar a hipótese de que essa tentativa não foi bem-sucedida; afinal, as mensagens são formuladas de forma tão subliminar, que, muitas vezes, nem os próprios letrados a compreendem (visto, por exemplo, o compositor ter sido criticado e acusado de ser "alienante"). No podemos negar, porém, o fato de que suas canções agradam ao público menos abastado, de outra forma diferente do protesto, pelos ditos populares, que constantemente usava, e da identificação com a letra. Podemos dizer que essa identificação, ocorrida talvez pelo fato de as pessoas se enxergarem nas letras de Chico, torna-se uma das principais causas de seu sucesso.
Partindo desse ponto de vista, podemos afirmar que as canções de Chico ganham mais importância no período da ditadura a partir do momento em que o compositor torna mais explícita em suas obras as mensagens subliminares. Em algumas das músicas proibidas a mensagem ainda está presente, mas torna-se mais inteligível do que em suas canções supostamente "líricas". Um exemplo disso é a música "Cálice", na qual o uso de palavras homônimas2 e de rimas leva-nos a ter outra interpretação da letra.


Há de se lembrar ainda de suas peças teatrais e das canções feitas para essa mesma área artística, que se tornam mais apreciadas.
Ainda, não podemos esquecer o fato de que o compositor é famoso até a atualidade, apesar de ser visto por alguns como um cantor de elite, não há uma camada social que nem ao menos tenha escutado falar de Chico.
Chegamos então à conclusão de que as canções de Chico não têm um público especificamente definido, mas são feitas para quem quiser ouvir (não apenas para quem puder), e, não importando a época, fica evidente que de um modo ou de outro atingem a todos os segmentos de público.
Seja como forma de protesto, canção de ninar, reflexo da sociedade, canção popular, usada para análise, peças de teatro ou como "música para se ouvir em momentos especiais", as obras de Chico estão presentes na história e no imaginário do povo brasileiro, que "canta, samba, dança e sorri".


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