quinta-feira, 24 de setembro de 2009

POÉTICA MUSICAL, LAZER E COTIDIANO
Giuliano Gomes de Assis Pimentel
Larissa Michelle Lara
ENTRE MUROS E GRADES DO COTIDIANO

A incursão pela poética musical e sua relação com o cotidiano é iniciada, neste texto, com Ouro de Tolo, de Raul Seixas e Paulo Coelho. O descontentamento com o rumo da vida cotidiana aparece em um "dito cidadão respeitável", empregado, ganhando C$ 4000,00 (renda da classe média na época) mensais, morando em Ipanema e podendo levar a família ao Zôo com seu corcel modelo 73: "Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo pra ir com a família no jardim zoológico dar pipocas aos macacos [...] Ah, mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado: macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco".
Embora devesse estar contente por ter vencido na vida, a pessoa revela-se decepcionada por achar que sua acomodação diante dos sonhos de consumo da pequena burguesia é "uma grande piada e um tanto quanto perigosa". Outros elementos estão presentes no descontentamento: a facilidade com que conseguiu suas expectativas e a consciência de existirem outras a conquistar. Por essas razões, não há satisfação com o estado de coisas, mas, ao contrário, se olha no espelho e percebe as limitações do corpo cravadas por um sistema social cheio de conformações.
Numa interpretação psicanalítica da narrativa inconsciente de um indivíduo, cujas características apontam para o dito cidadão referenciado em Ouro de tolo, Merengué (2002, p. 58) lembra o sonho de um homem que se encontra em miniatura fugindo dos jatos d’água que regam o gramado. Embora essa pessoa se apresente impotente e sem recursos, ela é, na realidade, "um profissional de sucesso, adulto, com dinheiro suficiente para consumir um carro importado, com vida afetiva e heterossexual". Enfim, é um indivíduo aparentemente realizado.
Porém, como num espelho, o sonho reflete a realidade de forma invertida. Afinal, vivemos em tempos nos quais o liberalismo aponta para um indivíduo capaz de obter sucesso, indicando quais são os padrões materiais para medi-lo. A impotência expressa pelo sonho representa, então, o peso da cobrança sobre o indivíduo, dado que a sociedade exige o consumo de determinados signos reveladores de poder, juventude, atitude, saúde, beleza, entre outras marcas de status. Daí o sonho revelar-se um paradoxal pesadelo: quando finalmente se chega a uma organização social na qual o indivíduo pode ser o que quiser, ele fica preso na rede dos modos de vida. Por isso, o trabalho acaba sendo meramente uma busca por recursos a serem exibidos em lazeres prestigiosos e caros, mas previsivelmente redundantes. (MERENGUÉ, 2002).
O inconsciente do indivíduo parece por desvelar o próprio espírito do tempo presente de toda uma sociedade. Nela estão os ditos cidadãos respeitáveis que, não obstante possuírem carro da moda, morarem em local nobre e terem bom salário, acabarão, conforme Ouro de tolo, sentados num "trono esperando a morte chegar". A "decepção" e o "pesadelo" de não encontrar satisfação pessoal quando se chega aos padrões médios de sucesso, delatam o vazio sentido pelo indivíduo ao se dar conta que a adesão a estilos de vida não cumpriu sua promessa de felicidade.
Em Muros e grades, música de Humberto Gessinger (ENGENHEIROS DO HAWAI, 1998), a questão do esvaziamento do social cujo cotidiano perde significados, redundando em um lazer igualmente insosso, reaparece lembrando os perigos de uma vida sem sentido:

Nas grandes cidades, no pequeno dia-a-dia,
O medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia.
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia.
Nas grandes cidades de um país tão violento,
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo,
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada.
E nada nos protege de uma vida sem sentido.
Um dia super, uma noite super, uma vida superficial
Entre as sombras e entre as sobras da nossa escassez.

Embora a letra seja esclarecedora em si mesma, vale destacar a frase "o medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia". Da mesma forma que o lazer é fruto da industrialização e da urbanização, esses dois fenômenos estão igualmente associados à violência. Esta gera medo, intimidação, levando as pessoas a ousarem menos e a limitar sua entrega às coisas da vida, inclusive à fantasia como forma de concretização de desejos nem sempre realizáveis no plano real.
VIOLÊNCIA URBANA E LAZER
Violência costuma ser sinônimo do cotidiano dos grandes centros, mas, surpreendentemente, o número de mortes violentas é significativo no tempo livre. Pelo menos é o que mostra o "Mapa da violência" na cidade de São Paulo, uma das maiores do mundo. Segundo os dados desse levantamento, a população da periferia sofre mais com as mortes por arma de fogo. Há um perfil para os assassinados: são indivíduos do sexo masculino, menores de 30 anos. Os dias mais violentos, quando ocorrem mais homicídios, são sábado e domingo, quando jovens praticam esportes com contato físico ou freqüentam os bares. Essa prática de lazer propicia contendas, por vezes resolvidas em atos impensados de agressão com uso de arma (WAISELFISZ; ATHIAS, 2005).
Por isso, políticas públicas surgem para equacionar esses problemas. Uma medida recente foi determinar fechamento dos bares nos dias e horários quando a violência é maior. Em complemento, aparecem programas de recreação para a população das periferias. O Correio Popular divulga trabalho realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em reportagem do dia 1º de outubro de 2002: "escolas abrem as portas aos finais de semana e reduzem violência" (GUGLIELMINETTI, 2002). A matéria informa que foram pesquisadas 260 escolas em dois estados, onde foram oferecidas atividades físico-esportivas e artísticas aos finais de semana. Dados indicam melhora de 77,8% do aprendizado e os casos de vandalismo tiveram redução em 63%. Diante desses índices é fácil acreditar, com base em Guglielminetti (2002, p. 05), na "tese de que a falta de opções de lazer e cultura é uma das grandes causas dos conflitos que geram violência".
Segundo Gutierrez (2001, p. 114), "a desagregação da estrutura familiar acarreta efeitos perversos nos mais diferentes aspectos da vida social, principalmente nos setores mais baixos da pirâmide econômica". Uma política de lazer bem direcionada poderia incentivar laços de sociabilidade mais solidários. Menor desgaste social representaria menos violências e economia no investimento em segurança, pois há, de fato, esperança entre profissionais e teóricos do lazer que a educação do/no tempo livre das pessoas resulte em atitudes mais conscientes. Essa visão é complementada pelo senso comum, instaurado no meio político, sobre a violência ser reflexo da falta de opções de lazer.
O lazer, esvaziado de sentido, acabou sendo reduzido à mera função compensatória ou preventiva. E, ainda, focar a violência como resultado da falta de diversão camuflaria o peso que o trabalho deveria dividir com as outras esferas da vida (educação, justiça, saúde, lazer) em relação ao problema da violência. Isso sem computar o perigo de reforçar a lógica puritana, vendo no excesso de tempo livre e falta de trabalho a origem dos problemas sociais.
Não deixa de ser paradoxal, a exemplo da vida cotidiana, observar a condenação (por vezes moralista), do lazer das camadas populares com a concomitante realização de programas de recreação orientados à organização de lazeres considerados adequados para esta população. Em acréscimo, percebe-se que o próprio "fornecer" lazer para as camadas carentes da sociedade pode, em última análise, contribuir para o esquecimento do lazer como direito de toda a cidade e não somente como ação estatal de emergência em focos específicos de marginalidade e violência.
Seriam essas iniciativas suficientes para confrontar o tom superficial da vida violenta e sem sentido nos grandes centros? Gilberto Gil traz uma inversão capital da causalidade pobreza-violência para discutirmos a inconsistência daquela visão ingênua e linear sobre lazer como remédio para a violência. Sobre isso, podemos recordar que o lazer é visto como solução para o problema da violência, tanto quanto foi interpretado por muitas décadas como bálsamo para o trabalho. Na música Domingo no Parque5 ocorre um homicídio no qual, contrariando a lógica formal, é a pessoa menos embrutecida quem comete o crime.
É importante ler essa música com o apoio de autores como Elias e Dunning (1992) para os quais a sociedade busca meios de diminuir o risco das pessoas se agredirem. Esse cuidado com a preservação da vida individual seria reflexo da contenção das emoções violentas, intensas e espontâneas ao longo de um processo civilizatório, típico da sociedade urbano-industrial. O lazer moderno seria um momento para permitir às pessoas liberarem as emoções contidas, mas de uma forma invariavelmente controlada. Por isso, o lazer estaria mais para um comportamento mimético.
As atividades miméticas, como aquelas que realizamos quando vamos a um parque de diversões e brincamos de ‘cair de um penhasco’ ou ‘atirar em animais’ existiriam para refrear nossos impulsos anti-sociais, mesmo nos permitindo tensões prazerosas.
Poderiam as tensões do trabalho e da vida social serem disfarçadas também por este caminho civilizatório? A resposta é clara: mesmo havendo um prazer no "descontrole controlado" permitido pela sociedade, há momentos de um efetivo transbordamento dos mecanismos de controle presentes no lazer. Algumas músicas dão conta dessa realidade.
Domingo no parque, de Gilberto Gil, apresenta três personagens - João, José e Juliana -em um parque de diversões. Mas essa atividade de lazer não está desatrelada das outras esferas da vida, em especial do trabalho. José - o rei da brincadeira -trabalha na feira; João -o rei da confusão - na construção. Juliana, cobiçada pelos dois amigos, é vista por José em companhia de João na roda gigante. A estória é concluída com um crime passional.
Na letra da música, elementos como lazer, cotidiano e temperamento parecem conflitar-se e, por vezes, contradizer-se. José, cujas habilidades brincantes são certamente úteis ao negócio, "como sempre no fim de semana, guardou a barraca e sumiu. Foi fazer no domingo um passeio no parque". Até este ponto se imagina que a coerência daria a José os louros da sociabilidade para conquistar Juliana ou mesmo ter uma relação harmoniosa com a vida. João, presumidamente, seria alguém limitado. A vivência de lazer (capoeira) é apenas um mero reforço da brutalidade de seu labor. Hipertrofiado pelo trabalho braçal, João só faz estimular essas qualidades corporais e morais válidas em seu ambiente através de atividades associadas com confusão. Porém, naquele domingo, "João resolveu não brigar". Ao invés de jogar capoeira, saiu apressado e foi namorar Juliana.

É no parque, no domingo à tarde, que o quadro complexo de disposições mostra-se surpreendente em sua resolução. José mata o casal a facadas. O reflexo do crime ocorrido no tempo livre transborda para o mundo do trabalho: "Amanhã não tem feira (ê, José). Não tem mais construção (ê, João)".
Passadas décadas desde que Gilberto Gil apresentou Domingo no parque nos Festivais, essa paradoxal música não perdeu sua atualidade. Aliás, a hodierna realidade só a tem tornado profética. Basta lembrar que, conforme Waiselfisz e Athias (2005), a maior parte das mortes violentas ocorre nos finais de semana e predomina entre jovens do sexo masculino, residentes na periferia, tal qual o João da música. Embora proeminente tal discussão não está presente nos estudos do lazer na proporção devida. Mas a música revela outras facetas sobre a intricada relação lazer-violência-cotidiano que podem ser compreendidas retomando a discussão sobre a função social da cidade.

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