A pesquisadora Calina M. Fujimura estabeleceu uma analogia entre a construção da narrativa do conto “Chapeuzinho Vermelho” e o jogo, nas versões dos camponeses, de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm para o conto. Conforme a noção de símbolo[1], estes se constituem em imagens pictóricas ou em palavras com a capacidade de substituir idéias, um sentimento ou um pensamento. Com o intuito de basear o estudo simbólico do conto “Chapeuzinho Vermelho”, será utilizado o Dicionário de símbolos, juntamente com as interpretações psicanalíticas de Erich Fromm e Bruno Bettelheim, para o conto em questão.
De acordo com a concepção de jogo, deve-se partir da premissa de que este só existe no jogar do jogador, sendo a ele inerente o movimento. Deste modo é preciso, antes, conhecer quem são os jogadores desta partida e como jogam, para desta forma entender qual a pertinência dos símbolos dentro desta proposta de trabalho.
Fantasia sexual de Chapeuzinho vermelho
Nas três versões estudadas pode ser vista a figura do Lobo como metáfora do homem sedutor, de forma velada ou direta. Porém, o que de imediato não se pode perceber é o conteúdo simbólico contido em tal personagem. Recorrendo ao Dicionário de símbolos, diversos significados do símbolo “lobo” são encontrados. No entanto, um chama atenção para o dado contexto sedutor – o “lobo” como um símbolo devorador. O “lobo”, a partir desta interpretação, pode ser comparado a Cronos, Deus grego que devorava seus filhos. Cronos, assim, passa a ser confundido com Chronos – o tempo – mas um tempo que devora a juventude de homens e objetos. Fromm, em seu estudo A linguagem esquecida, ressalta a imagem devoradora do ato sexual tal qual Cronos devorava seus filhos e o tempo à vida, a relação sexual é encarada como o devorar da fêmea pelo macho. E é desta característica devoradora que se poderá compreender o significado simbólico do embate entre Chapeuzinho Vermelho e o Lobo.
Relatada sua possível simbologia, pode-se agora entender quem é este jogador que deseja devorar. O Lobo de “Chapeuzinho Vermelho” é um jogador que não dá pistas das suas jogadas, como faz Chapeuzinho, ao contrário, ele as esconde atrás de sua falsa cordialidade. O Lobo pode ser representado pelo jogador trapaceador visto no texto de Duflo, malicioso, ele é o ator que fala e seduz detrás da máscara. Estas características do perfil do jogador ficam claras nas passagens em que o Lobo procura tirar vantagem, seja no caminho que leva à casa da avó, por suas palavras sedutoras que a convidam a deixar de ser tão séria, ou ao se disfarçar de avó para enganar Chapeuzinho:
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera. (DARNTON, 2001: 21 e 22)
Se este jogador se oculta atrás da imagem de um Lobo cortês, porém faminto, o seu prato principal constará, justamente, da “inocente” menina, conhecida nas versões de Charles Perrault e na dos Irmãos Grimm como Chapeuzinho Vermelho. Perrault é quem dá à versão dos camponeses este nome à menina que passa a ser também título desta história. Este insere a figura do capuz vermelho que origina o nome “Chapeuzinho Vermelho” tão familiar aos leitores, e que torna mais sugestivas as intenções da menina. Nome que os Grimm mantém em sua narrativa, com um ligeiro acréscimo do chapéu ser de veludo.
O capuz vermelho que acompanha a menina nas versões de Perrault e na dos Grimm, surge como símbolo da cor do sangue, da menstruação, cor da alma, da libido e do coração. A partir disto, tem-se a visão da relação simbólica entre o Lobo e Chapeuzinho. Ao ser observada a estreita ligação entre “lobo” e Chronos, pode-se entender que talvez este Lobo do conto seja o tempo devorador a destruir a fase menina de Chapeuzinho, já que nela se desperta a sua nova condição marcada pela menstruação e o desabrochar da libido; a juventude e os desejos amorosos passam a envolvê-la nesta transformação.
Chapeuzinho vermelho em propaganda de bebida alcoólica.
Para Fromm, o simbolismo do capuz vermelho é muito sugestivo como observado em suas palavras: “O ‘chapeuzinho vermelho de veludo’ é um símbolo de menstruação. A menina de cujas aventuras nos falam tornou-se adulta e vê-se agora defrontada com o problema do sexo.” (FROMM, 1973: 175)
Chapeuzinho vermelho curtindo com o lobo mau em uma motocicleta.
Neste contexto do capuz vermelho, Bruno Bettelheim traz uma visão sobre a função da avó de Chapeuzinho, que à primeira vista, aparece sem muita importância dentro da narrativa. Para Bettelheim, a avó de Chapeuzinho transmite de forma inconsciente todo o seu conhecimento e experiência sexual na forma do capuz vermelho dado por ela, pois a cor deste, revela como significado simbólico oculto a pulsão dos impulsos sexuais presentes no ser humano. Como diz Bettelheim:
(...) é fatal para a jovem a mulher mais velha abdicar de seus próprios atrativos para os homens e transferi-los para a filha, dando-lhe uma capa vermelha tão atraente.
Em “Chapeuzinho Vermelho”, tanto no título como no nome da menina, enfatiza-se a cor vermelha, que ela usa declaradamente. O vermelho é a cor que significa as emoções violentas, incluindo as sexuais. O capuz de veludo vermelho que a avó dá para Chapeuzinho pode então ser encarado como o símbolo de uma transferência prematura da atração sexual (...). (BETTELHEIM, 2004: 209)
Na versão dos camponeses a questão do capuz vermelho não é citada, encontra-se apenas a figura de uma menina que deixa sua casa para encontrar a avó. Então como a transferência da sexualidade é feita nesta história? Ao que tudo indica é também através da avó. Como o Lobo ao chegar à casa da avó não a devora e sim a mata, despejando seu sangue em uma garrafa e cortando seu corpo em fatias, quando Chapeuzinho finalmente chega ao seu destino já encontra o Lobo disfarçado de sua avó, recomendando que ela se servisse da carne e do vinho que estavam na copa. Servindo-se da carne e do vinho, um gato lá presente sentencia: “Comer da carne e beber do sangue de sua avó!” (DARNTON, 2001: 21e 22)
Partindo do significado simbólico do gato como animal que carrega a sagacidade, engenhosidade e portador do dom da clarividência, tem-se adiantado o futuro de Chapeuzinho, nas palavras do gato, como “menina perdida”. Comendo as partes do corpo (a carne) e bebendo do sangue (o vinho) da avó, os símbolos ocultos de transferência de sexualidade passam a conotar a fragilidade da carne perante o pecado, dentre eles o impulso sexual incontrolável, e se vê no vinho um símbolo do conhecimento e de iniciação. Assim o ato canibal de Chapeuzinho é entendido como o tomar do conhecimento da avó, para iniciação sexual. Não se tem, desta forma, a passagem da sexualidade por meio do capuz vermelho, mas se pode tentar encontrá-la de forma encoberta nos seus símbolos.
Para finalmente descobrir-se o perfil desta jogadora, deve-se primeiro observar as pistas deixadas por Chapeuzinho a fim de se entender o jogo velado desta “inocente” jogadora.
Nas versões de Perrault e na dos Irmãos Grimm, Chapeuzinho ao indicar o caminho para casa de sua avó, praticamente se entrega ao Lobo. O Lobo que se apresenta na forma de um jogador astuto, vale-se das suas artimanhas para tomar o caminho mais curto ou adquirir certa vantagem na distração de Chapeuzinho. Será neste caminhar pela “estrada afora” que esta irá dar as pistas que se reunirão ao capuz vermelho para formar a grande interpretação simbólica do prenúncio do final deste jogo.
Se a sexualidade é passada pela avó à Chapeuzinho através do capuz vermelho, a presença do desejo de deixar-se envolver por esse “lobo” pode também ser vista em alguns signos espalhados pelo breve período de distração pelo qual passa a personagem. Em Perrault, Chapeuzinho distrai-se colhendo as avelãs no bosque, símbolo da fertilidade e da luxúria, correndo atrás de borboletas, símbolo de metamorfose, e colhendo flores, símbolo da passividade. Conhecidos os símbolos, o entendimento deste percurso de passividade pode ser compreendido.
O movimento passivo do jogar de Chapeuzinho só se mostra ao se perceber que ela se deixa seduzir pelas palavras do Lobo, tomando o caminho mais longo até à casa da avó por sugestão do Lobo. Suas intenções surgem ocultas detrás de símbolos como as avelãs que passam a reiterar a idéia do vermelho menstruação como sinal biológico de fertilidade, é a menina transformando-se em mulher em um processo de metamorfose, tal qual sofrem as borboletas.
Versão infantil da histórinha.
A mesma compreensão simbólica pode ser encontrada na história dos Grimm, em que este Lobo malicioso a convida a deixar de ser tão séria, e que Chapeuzinho, de maneira semelhante, aceita a proposta sem se lembrar da advertência dada por sua mãe, na qual pedia que Chapeuzinho andasse direito pelo caminho para não tropeçar e, deste modo, não cair quebrando a garrafa de vinho que levava para sua avó.
Para Fromm, a advertência consiste em alertar a menina da possível perda de sua pureza, ao passo que quebrando a garrafa (símbolo da virgindade), e se desviando do caminho, Chapeuzinho poderia assim descobrir o que realmente há nos “cantos”, que não deveria ser revelado.
Duflo, em seu trabalho, descreve a freqüência com que o jogo era praticado, referia-se a “uma sociedade do jogo”, em que este era muito comum apesar das proibições. No entanto, como diz Duflo “todo lugar onde o jogo é proibido, essa proibição é transgredida” (DUFLO, 1999: 47), consistindo em um instigador e gerador de um aumento no prazer dos jogadores, tal qual Chapeuzinho que burla a advertência dada e as regras de menina pura para ir ao encontro do Lobo. Mesmo tendo consciência do dever de visitar sua avó doente, Chapeuzinho aceita veladamente o jogo da figura sedutora masculina, para aos poucos deixar ser devorada por meio de uma simbologia que sussurra o aflorar do desejo sexual. Ter-se-á, desta forma, o grande embate agônico entre estes jogadores, que em um jogo de perguntas e respostas ditam o final desta partida.
De acordo com Iser, em o “Jogo do texto”, tem-se a adoção do sentido figurativo do significante em detrimento do sentido real deste, com o intuito de gerar a característica ficcional do texto, o como se intencionando dizer o que foi dito. “Em Chapeuzinho Vermelho”, fica claro o jogo com a palavra a fim de fazê-la ter um significado primeiro superficial, no qual, no caso do Lobo, pode remeter, por exemplo, a uma perseguição, a uma caça, um animal atrás de sua presa – Chapeuzinho. Este Lobo, assim como os seus outros da selva, antes, rondam sua vítima, armam o seu bote para apanhá-la desprevenida, e cruelmente conseguem devorar rapidamente sua refeição. Mas um Lobo que se veste de avó, um Lobo conversando com Chapeuzinho, algo está estranho.
Ao longo de todas as narrativas do conto, o jogo com o “significante fraturado”, ao qual se refere Iser, toma forma na figura do Lobo. O protótipo do Lobo é interessante à história por ele ser um devorador da natureza, um elemento conhecido dentro da vida dos camponeses da França do século XVIII. Como diz Iser: “O significante, portanto, denota algo mas, ao mesmo tempo, nega seu uso denotativo, sem que abandone o que designava na primeira instância”. (ISER, 1979: 110), assim como nas três versões trabalhadas, a dualidade do Lobo como lobo e deste como homem é de suma importância para a aproximação do homem com seu lado sexual “devorador” e “selvagem”. Como bem ressalta Vilém Flusser, em Da religiosidade, “(...) embora tenham os lenhadores exterminado o lobo, no curso dos últimos dez mil anos, nada tenha perdido o Lobo do seu terror primitivo” (FLUSSER, 2002: 165), de animal predador e da imagem sedutora apresentada ao longo do texto.
Trilhando as pistas simbólicas deixadas por Chapeuzinho durante o seu jogo, o momento do duelo final é chegado; Lobo e Chapeuzinho encontram-se juntos em um mesmo tabuleiro, com táticas diferentes, mas com o fim já esperado.
A "inocente" chapeuzinho observada pelo matreiro lobo mau.
Em meio ao espanto, a “inocente” menina joga com suas constatações interessadas a respeito das diferenças que avista no corpo desta avó-lobo, no qual orelhas, olhos, mãos e boca se tornam tão grandes, e por fim vão moldando a forma de um corpo masculino bem mais imponente que o frágil porte da avó, aproximando, desta forma, as características do lobo as do homem. A versão dos camponeses traz além deste breve diálogo de reconhecimento do corpo masculino, uma prévia do que está por acontecer. Antes deste grande embate Chapeuzinho questiona ao Lobo o destino de suas roupas, e ao longo deste processo, o Lobo repete a mesma sentença: “– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.” (DARNTON, 2001: 21 e 22). O fogo como símbolo de iniciação, leva o leitor a entender o jogo do desejo masculino e a possível conseqüência das insinuações de Chapeuzinho.
Assim, do lado inverso, o Lobo responde ao diálogo travado de uma maneira breve, seguindo os passos de sua oponente, e depois de respondida a finalidade daquela boca tão grande, não se tem mais respostas, pois neste momento, Chapeuzinho já tinha sido devorada. Em um diálogo que no nível do significante este denota a suposta morte de Chapeuzinho ao ser devorada pelo Lobo, dentro da idéia de “significante fraturado”, de Iser, este passa a carregar a concepção figurada do ato sexual.
Dentro do diálogo travado entre Chapeuzinho e o Lobo, agon surge marcada fortemente como característica desta narrativa que estabelece sua moral através do castigo que Chapeuzinho sofre ao se descuidar “saindo do caminho” e sendo assim devorada. Segundo Iser, agon consiste em uma estratégia de jogo na qual o texto é centrado em normas e valores conflitivos, sendo que este debate busca envolver “uma decisão a ser tomada pelo leitor em relação a estes valores contrários, que se mostram internamente em colisão” (ISER, 1979: 113). O conflito entre norma e desejo aparecem como forma de reflexão ao leitor em “Chapeuzinho Vermelho”, a moral de não se desviar do caminho às meninas é clara no texto, assim como a punição de Chapeuzinho por sua escolha é dada quando o Lobo a devora, é um processo em que o leitor é levado a questionar-se, automaticamente, a respeito de suas decisões impulsivas e das ordens.
A atração pela figura masculina e a curiosidade em conhecê-la impelem Chapeuzinho a aceitar a partida proposta pelo Lobo, mesmo sabendo que sua derrota seria necessária para sua vitória. O Lobo a devorou jogando de acordo com as cartas que ao longo do texto por ela foram dadas. O diálogo que antecede o final apenas representa o ápice destes elementos simbólicos que se sucederam na história, realmente, vê-se que o fim estava mesmo no começo, como disse Beckett. Pode-se dizer que tanto Chapeuzinho como o Lobo venceram a partida: uma foi devorada, tal qual tinha sugerido desejar, e o outro devorou, como ditava sua “fome”. Empatou.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
DUFLO, Colas. O jogo: de Pascal a Schiller. Trad. Francisco Settineri e Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
FLUSSER, Vilém. “Do poder da língua portuguesa”. In: Da religiosidade. São Paulo: Escrituras, 2002.
FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Trad. Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos de fadas. Trad. David Jardim Jr. Belo Horizonte: Vila Rica, 1994.ISER,Wolfgang. "O Jogo do Texto". In: COSTA LIMA, Luiz (coord. e trad.). A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: DCL, 2003.
PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Trad. De Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
[1] De acordo com o estudo de Jung sobre as raízes da simbologia presente nos contos de fadas e mitos, Nelly Novaes Coelho, em O conto de fadas, refere-se à existência de um “fundo psíquico comum e inconsciente” gerador de arquétipos, os quais dão origem a “impulsos psíquicos comuns a todos os homens”, ou a “imagens” capazes de tomar a forma semelhante de “emoções, fantasias, medos etc.” criadas por “fenômenos da natureza ou por experiências existenciais decisivas ( com a mãe, com as relações homem-mulher, com o confronto de forças desiguais ou injustiça etc.)”. (COELHO, 2003:116)
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