Embora desprestigiada pelos professores, que preferem gêneros mais “nobres”, a música caipira/sertaneja oferece ótimo material para o ensino da História
Edilson Aparecido Chaves
Tornou-se comum nas salas de aula a utilização de composições da MPB como fonte de pesquisa histórica ou recurso para o ensino das ciências humanas de maneira geral. Os autores dos manuais didáticos que as selecionam costumam dar mais ênfase, no entanto, às canções produzidas durante os regimes de exceção (Estado Novo e regime militar) e às temáticas extraídas da Bossa Nova, do Tropicalismo, das chamadas “músicas de protesto” e do repertório da Jovem Guarda. O gênero caipira, ou sertanejo, tem sido simplesmente descartado. Não devia ser assim, sobretudo se levadas em conta as preferências populares. A música caipira continua sendo consumida por grande parte das famílias brasileiras, como destacou pesquisa feita pelo programa “Globo Rural” junto à ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos). O segmento caipira/sertanejo representa hoje 15% do mercado brasileiro, perdendo apenas para o gênero pop, em primeiro lugar, e a música romântica, que fica em segundo. Por que não incluí-la então nos manuais didáticos, sobretudo do ensino fundamental e médio, como fonte legítima de estudo e reflexão para os alunos?
As escolhas dos professores podem ser explicadas. O gênero caipira ainda é visto como simplório e desprovido de valor no seu conteúdo, tornando-se, ao longo dos anos, alvo de críticas na verdade bem inconsistentes. Assim, no meio escolar, passou-se a aceitar como fontes de cultura musical apenas aquelas canções privilegiadas pela indústria cultural. O conjunto dos gêneros musicais preferidos dos professores pertence sem dúvida às principais correntes históricas da MPB. Mas isso não devia justificar a ausência das canções caipiras. A exemplo de outras composições, o gênero sertanejo também se insere no contexto brasileiro, abordando temas de contestação ou exaltação de conjunturas políticas, sociais e econômicas bem significativos para o estudo e a compreensão da História.
Por outro lado, muitos dos jovens que lêem os livros didáticos trazem de suas famílias um gosto musical que não exclui a música caipira/sertaneja. Esta, a exemplo de outros gêneros considerados mais “nobres”, deveria ser reconhecida como possuidora de uma estética e uma identidade cultural próprias que, embora poucos levem isso em conta, remontam ao século XVI, quando a ação dos bandeirantes marcou não só um novo ciclo de dominação e descobertas, mas também a formação de uma nova cultura – a caipira. À medida que os bandeirantes avançavam pelo interior do país, ia-se criando uma fronteira entre dois mundos distintos: o “civilizado”, representado pelos descendentes brancos, e o “atrasado”, representado pelos nativos. Para o crítico literário Antonio Candido, foi da mistura desses dois mundos que surgiu o caipira, mescla de branco e índio, somado mais tarde ao sangue do negro.
A partir das primeiras ocupações no interior, outras áreas foram surgindo, como vilas, fazendas e arraiais. As informações não chegavam a esse homem simples, cercado pela miséria que as condições de vida lhe impunham, com a mesma velocidade com que chegavam aos habitantes das metrópoles. O caipira permaneceu, assim, portador de peculiaridades marcantes nos campos da religiosidade, da literatura, da comida, da dança e da música. A música caipira estava sempre associada a rituais religiosos, ao trabalho ou ao lazer, demonstrando dessa forma o universo dos primeiros caipiras, que tinham nesse tripé o elo de sua sociabilidade com o mundo exterior.
Outro aspecto que deve ser enfatizado: o caipira, tradicionalmente, sempre foi estigmatizado com atributos negativos e visto como um homem atrasado, destituído de cultura. Seu primeiro espaço social, o sertão, também era visto pelas elites como um espaço vazio, inculto, terra de variados tipos anti-sociais em que se incluíam criminosos, degredados, e às vezes, nas crendices populares, até lugar da morada do demônio. A cultura caipira foi, portanto, ao longo dos séculos, considerada uma cultura rústica e sem valor social.
Na década de 1920, coincidindo com os ecos da Semana de Arte Moderna, começaram a surgir estudos visando ao resgate dessa cultura, já então merecedora da denominação “popular”. Apareciam as primeiras canções caipiras gravadas em disco, como a célebre “Tristeza do Jeca”, composta por Angelino de Oliveira em 1918 e gravada em 1923. Mas será com o conjunto “Cornélio Pires e sua turma” que esse gênero musical entrará na indústria cultural.
Cornélio passou a se apresentar pelo interior paulista fazendo shows, tendo gravado seu primeiro disco em 1929. Como o gênero ainda era desconhecido, tirou para isso dinheiro do próprio bolso, apostando no sucesso que estava por vir. Essa cultura “rústica” passa aos poucos, então, a ser levada ao público das grandes cidades através dos programas de rádio, influenciando compositores urbanos, como Noel Rosa (“Festa no céu”, “Minha viola”, “Mardade cabocla”) Ary Barroso (“Rancho Fundo”) e Lamartine Babo (“Serra da Boa Esperança”).
Devido ao grande movimento migratório, acentuado no país na década de 1950, muitos homens do campo passam a integrar os segmentos da classe operária, mas sem esquecer o passado, como relata a narrativa desta composição (“Sodade do tempo veio”), assinada por Sorocabinha: “É só eu pegá na viola, me vem a recordação:/ o tempo do meu sitinho,/ que tudo era bom, ai.../ que tudo era bom/ (...) Hoje eu me vejo em São Paulo,/ nessa rica povoação,/ trabaiando de operário/ sendo que já fui patrão, ai.../ sendo que já fui patrão.” Temática semelhante usarão Dino Franco e Nhô Chico em “Caboclo na cidade”: “Seu moço eu já fui roceiro/no triângulo mineiro/ onde eu tinha meu ranchinho (...)/ então aconteceu isso/ resolvi vender o sítio/ e vim morar na cidade/ Nem sei como se deu isso/ Seu moço naquele dia/ eu vendi minha família/ e a minha felicidade.”
Nos dois casos, verifica-se um reajuste da cultura rural frente à urbana no qual a primeira passa obrigatoriamente a aceitar as condições impostas pela segunda. Mas o caipira jamais esqueceria sua origem – e um dos instrumentos utilizados para tal fim foi a música. Este repertório, se analisado com o respeito que merece, situando-o dentro do contexto histórico brasileiro, vai apresentar um caráter narrativo das dificuldades do homem rural na cidade grande e, ao mesmo tempo, a negação dos valores urbanos frente aos do sertão.
Se levadas para as salas de aula, as músicas caipiras – com o professor explorando as representações nelas contidas – poderiam se transformar em material didático de ótima qualidade sobre a realidade vivida pelo migrante em seu novo espaço de vida, a cidade. E não apenas isso. Entre os temas cantados nas modas e músicas caipiras/sertanejas, há também críticas a governantes e apreciações sobre os problemas do cotidiano, como é o caso da “Moda do bonde camarão”, antes denominada “Bonde camarão”, de Mariano da Silva e Cornélio Pires, em que um caipira, ao chegar à cidade de São Paulo, descreve a estranheza que lhe causam os bondes modernos: “Aqui em São Paulo/ o que mais me amola/ é esses bonde/ que nem gaiola./ Cheguei, abriro a portinhola,/ levei um tranco/ e quebrei a viola./ Inda puis dinheiro na caxa de esmola”.
As escolhas dos professores podem ser explicadas. O gênero caipira ainda é visto como simplório e desprovido de valor no seu conteúdo, tornando-se, ao longo dos anos, alvo de críticas na verdade bem inconsistentes. Assim, no meio escolar, passou-se a aceitar como fontes de cultura musical apenas aquelas canções privilegiadas pela indústria cultural. O conjunto dos gêneros musicais preferidos dos professores pertence sem dúvida às principais correntes históricas da MPB. Mas isso não devia justificar a ausência das canções caipiras. A exemplo de outras composições, o gênero sertanejo também se insere no contexto brasileiro, abordando temas de contestação ou exaltação de conjunturas políticas, sociais e econômicas bem significativos para o estudo e a compreensão da História.
Por outro lado, muitos dos jovens que lêem os livros didáticos trazem de suas famílias um gosto musical que não exclui a música caipira/sertaneja. Esta, a exemplo de outros gêneros considerados mais “nobres”, deveria ser reconhecida como possuidora de uma estética e uma identidade cultural próprias que, embora poucos levem isso em conta, remontam ao século XVI, quando a ação dos bandeirantes marcou não só um novo ciclo de dominação e descobertas, mas também a formação de uma nova cultura – a caipira. À medida que os bandeirantes avançavam pelo interior do país, ia-se criando uma fronteira entre dois mundos distintos: o “civilizado”, representado pelos descendentes brancos, e o “atrasado”, representado pelos nativos. Para o crítico literário Antonio Candido, foi da mistura desses dois mundos que surgiu o caipira, mescla de branco e índio, somado mais tarde ao sangue do negro.
A partir das primeiras ocupações no interior, outras áreas foram surgindo, como vilas, fazendas e arraiais. As informações não chegavam a esse homem simples, cercado pela miséria que as condições de vida lhe impunham, com a mesma velocidade com que chegavam aos habitantes das metrópoles. O caipira permaneceu, assim, portador de peculiaridades marcantes nos campos da religiosidade, da literatura, da comida, da dança e da música. A música caipira estava sempre associada a rituais religiosos, ao trabalho ou ao lazer, demonstrando dessa forma o universo dos primeiros caipiras, que tinham nesse tripé o elo de sua sociabilidade com o mundo exterior.
Outro aspecto que deve ser enfatizado: o caipira, tradicionalmente, sempre foi estigmatizado com atributos negativos e visto como um homem atrasado, destituído de cultura. Seu primeiro espaço social, o sertão, também era visto pelas elites como um espaço vazio, inculto, terra de variados tipos anti-sociais em que se incluíam criminosos, degredados, e às vezes, nas crendices populares, até lugar da morada do demônio. A cultura caipira foi, portanto, ao longo dos séculos, considerada uma cultura rústica e sem valor social.
Na década de 1920, coincidindo com os ecos da Semana de Arte Moderna, começaram a surgir estudos visando ao resgate dessa cultura, já então merecedora da denominação “popular”. Apareciam as primeiras canções caipiras gravadas em disco, como a célebre “Tristeza do Jeca”, composta por Angelino de Oliveira em 1918 e gravada em 1923. Mas será com o conjunto “Cornélio Pires e sua turma” que esse gênero musical entrará na indústria cultural.
Cornélio passou a se apresentar pelo interior paulista fazendo shows, tendo gravado seu primeiro disco em 1929. Como o gênero ainda era desconhecido, tirou para isso dinheiro do próprio bolso, apostando no sucesso que estava por vir. Essa cultura “rústica” passa aos poucos, então, a ser levada ao público das grandes cidades através dos programas de rádio, influenciando compositores urbanos, como Noel Rosa (“Festa no céu”, “Minha viola”, “Mardade cabocla”) Ary Barroso (“Rancho Fundo”) e Lamartine Babo (“Serra da Boa Esperança”).
Devido ao grande movimento migratório, acentuado no país na década de 1950, muitos homens do campo passam a integrar os segmentos da classe operária, mas sem esquecer o passado, como relata a narrativa desta composição (“Sodade do tempo veio”), assinada por Sorocabinha: “É só eu pegá na viola, me vem a recordação:/ o tempo do meu sitinho,/ que tudo era bom, ai.../ que tudo era bom/ (...) Hoje eu me vejo em São Paulo,/ nessa rica povoação,/ trabaiando de operário/ sendo que já fui patrão, ai.../ sendo que já fui patrão.” Temática semelhante usarão Dino Franco e Nhô Chico em “Caboclo na cidade”: “Seu moço eu já fui roceiro/no triângulo mineiro/ onde eu tinha meu ranchinho (...)/ então aconteceu isso/ resolvi vender o sítio/ e vim morar na cidade/ Nem sei como se deu isso/ Seu moço naquele dia/ eu vendi minha família/ e a minha felicidade.”
Nos dois casos, verifica-se um reajuste da cultura rural frente à urbana no qual a primeira passa obrigatoriamente a aceitar as condições impostas pela segunda. Mas o caipira jamais esqueceria sua origem – e um dos instrumentos utilizados para tal fim foi a música. Este repertório, se analisado com o respeito que merece, situando-o dentro do contexto histórico brasileiro, vai apresentar um caráter narrativo das dificuldades do homem rural na cidade grande e, ao mesmo tempo, a negação dos valores urbanos frente aos do sertão.
Se levadas para as salas de aula, as músicas caipiras – com o professor explorando as representações nelas contidas – poderiam se transformar em material didático de ótima qualidade sobre a realidade vivida pelo migrante em seu novo espaço de vida, a cidade. E não apenas isso. Entre os temas cantados nas modas e músicas caipiras/sertanejas, há também críticas a governantes e apreciações sobre os problemas do cotidiano, como é o caso da “Moda do bonde camarão”, antes denominada “Bonde camarão”, de Mariano da Silva e Cornélio Pires, em que um caipira, ao chegar à cidade de São Paulo, descreve a estranheza que lhe causam os bondes modernos: “Aqui em São Paulo/ o que mais me amola/ é esses bonde/ que nem gaiola./ Cheguei, abriro a portinhola,/ levei um tranco/ e quebrei a viola./ Inda puis dinheiro na caxa de esmola”.
Esta composição revela, num primeiro momento, a recusa do caipira em entender os processos do capitalismo na sua forma mais original, o da exploração, o que se revela no uso da máquina para se locomover e na “caxa” de esmola, que, na verdade, simboliza o lucro da empresa. Outros temas recorrentes são inflação e mudança de governo, como nos indica a letra de “A coisa ficou bonita”, de Tião Carrero e Lourival dos Santos: “Sofria sem esperança/ a população aflita/ A inflação furava o povo/ com sua espada esquisita/ Caiu do céu um governo/ trazendo força infinita/ O preço foi congelado/ quase ninguém acredita (...)/ A coisa que tava feia/ agora ficou bonita./ Presidente e seus ministros/ capricharam na escrita/ Pacotão veio bonito/ vejam só a cor da fita.
”A letra é uma referência ao primeiro governo pós-ditadura militar, para o qual foi eleito Tancredo Neves, que não chegou a assumir. Seu vice, José Sarney (1985-1990), recebeu um país com graves problemas sociais. A “esperança”, portanto, estava no combate à inflação que veio com o Plano Cruzado, cujas medidas de maior destaque estão presentes na letra: congelamento dos preços das mercadorias e reajuste automático dos salários, com o virtual aumento do poder de compra.
Boa parte da História do Brasil, como se vê, aparece nessas composições. O historiador Ubiratan Rocha chama a atenção para a preparação do professor. Segundo ele, arrolar diferentes falas históricas, sem a preocupação com uma teoria que possa ordená-las e dados que possam suplementá-las, pode resultar num relativismo inconseqüente. Para não se tratar simplesmente de memória em vez de História, é preciso que se desenvolva um esforço teórico, contextualizando os vários testemunhos. Diferentes pontos de vista são importantes não para que se possa tomar partido de um ou de outro, mas para se compreender melhor a realidade sob diferentes óticas.
A intenção deve ser sempre a de se superar uma visão simplista, buscando aliar o estudo de documentos históricos às letras de canções que traduzam parte da memória social. Além disso, poderá contribuir para a derrocada de preconceitos que ainda cercam o sertanejo, o caipira e sua produção poética/musical. A música caipira, sem dúvida alguma, no que expressa as angústias do homem do campo frente à realidade urbana, faz parte da nossa memória, embora este acervo valioso tenha sido injustamente menosprezado na sala de aula e subestimado no meio acadêmico.
Edilson Aparecido Chaves é professor de História e mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com a dissertação “A música caipira em aulas de História: questões e possibilidades”, 2006.
fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=630&pagina=4 acesso em 29 de outubro de 2009.
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