segunda-feira, 5 de outubro de 2009

INTEGRAÇÃO PERVERSA: EXÍLIO, ESPIONAGEM E REPRESSÃO NO CONE SUL (1966-1978)
Pio Penna Filho*








Durante o período das ditaduras Latino-americanas nas décadas de 1960 e 1970, houve uma intensa integração dos serviços de segurança nacionais, seja por meio de ações de inteligência na troca de informações, seja pela integração perversa dos sistemas de repressão efetivos, os quais iam muito além do plano da inteligência para ações concretas de eliminação dos oponentes/resistentes às diversas ditaduras militares instaladas nos países sul-americanos, especialmente no âmbito do Cone Sul. a proposta deste trabalho é apresentar os resultados de uma ampla pesquisa realizada com documentação inédita obtida junto ao arquivo do Ministério das Relações Exteriores, dissecando e explicando como atuava o Centro de Informações do Exterior (Ciex), órgão de informações e centro de espionagem que atuava além das fronteiras nacionais e tinha como principal objetivo monitorar as atividades dos exilados brasileiros.





O Brasil no Contexto do Golpe de Estado de 1964
A ditadura militar que assumiu o poder em março de 1964, além de promover a mudança do regime e suprimir o Estado democrático, foi profundamente marcada pela violência utilizada como método para abafar a oposição e garantir a manutenção da nova ordem que foi ditada ao país.
Com efeito, 1964 tornou-se um marco na história contemporânea brasileira. O Golpe de Estado desferido contra o governo do presidente João Goulart significou a ruptura com a democracia instalada no país após a Segunda Guerra Mundial. Significou, também, o coroamento do processo conflituoso entre camadas da sociedade civil e projetos políticos opostos vislumbrados para o Brasil pelos setores sociais mais organizados.
Um outro elemento que ajudou a acirrar as contradições internas da sociedade brasileira, e que levou ao Golpe de Estado, foi o contexto internacional bipolar, no qual a estrutura básica da Guerra Fria, profundamente marcada pela agudização das diferenças ideológicas, certamente potencializou uma situação de conflito com amplas repercussões na vida política nacional.
Os anos compreendidos entre 1961 e 1964 foram, sem dúvida, um dos períodos mais férteis de debates ideológicos na vida política nacional. Em poucos momentos da história brasileira se registraram tantas discussões envolvendo a questão social e com alto grau de conscientização política, com intensa participação dos sindicatos, movimento estudantil e partidos políticos de cunho nacionalista e socialista. A renúncia de Jânio Quadros e sua substituição por João Goulart, um político identificado com o trabalhismo getulista e até certo ponto aberto à participação dos partidos de esquerda, ajudaram a compor um quadro ainda mais complexo. Por seu turno, os partidos políticos tradicionais de cunho liberal e as diversas associações empresariais, considerando que algumas delas chegaram à sofisticação de estruturar institutos de pesquisa e organizações voltadas para a análise da conjuntura política nacional, comprovam que também estavam se instrumentalizando racionalmente para o embate ideológico e o clima de conspiração que vinha envolvendo o conjunto da sociedade brasileira nos agitados anos 1960.
Muito embora os setores conservadores da sociedade brasileira, tendo à frente o Exército, tenham manobrado para que o Vice Presidente não assumisse o poder após a renúncia de Jânio Quadros – Goulart havia sido eleito Vice-Presidente na chapa do candidato derrotado, Marechal Lott, e estava em viagem oficial à China comunista quando da renúncia de Quadros, o que sugere um elemento a mais a compor a trama da renúncia, uma vez que Quadros conhecia muito bem a aversão que o oficialato do Exército e da Aeronáutica nutriam por tudo que lembrasse o getulismo –, a pressão popular e a resistência montada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, forçaram uma solução alternativa negociada, e não somente de força, para o impasse criado pela renúncia. De qualquer forma, desde o momento inicial da crise de 1961, ficou patente que havia, por parte de uma camada influente de altos oficiais do Exército, o descontentamento com os rumos políticos que se anunciavam com a ascensão de Goulart à presidência.
Não só os militares passaram a conspirar contra o governo do herdeiro político de Getúlio Vargas. Considerável parcela da elite política nacional desde cedo demonstrou preocupação com a possível guinada política que o governo poderia dar para atender aos anseios da parcela menos favorecida da população, angariando, dessa forma, o necessário apoio popular para a implementação de reformas estruturais, dentre as quais a agrária e a bancária. Assim, a parte mais ativa do empresariado nacional envolveu-se diretamente na conspiração para a derrubada do governo Goulart, contando para tanto com o poder financeiro e o suporte internacional prontamente oferecido pelos Estados Unidos da América.
Em 1964 o presidente Goulart foi deposto e os militares, associados com os setores organizados do empresariado nacional, retomaram o comando político do Estado. O Golpe forçou o exílio de expressiva parcela de políticos e colaboradores comprometidos com o governo de João Goulart, enquanto uma parte dos militantes dos partidos de esquerda e de movimentos sociais optou pela permanência no país e por ações políticas de denúncia e combate ao regime ditatorial. Em pouco tempo começou a contestação violenta contra o regime e, da mesma forma, a reação do lado do Estado autoritário.




Os Serviços de Informação e a Repressão
A natureza do regime instaurado em 1964 implicou na montagem de um amplo e complexo sistema de informações que teve como objetivo primordial a manutenção do poder militar. Gradualmente os militares constituíram um verdadeiro sistema de informações que abrangia todo o país.
O objetivo principal, ao contrário dos serviços de informação de Estados democráticos, que em tese possuem como atribuição principal a defesa do Estado contra ações de natureza espúria (como ações terroristas, especulações financeiras, ingerências externas e inserção estratégica internacional), era o de zelar pela manutenção dos sucessivos governos autoritários que se revezaram no poder entre 1964 e 1984.
O órgão centralizador desse sistema foi o Serviço Nacional de Informações (SNI), criado pelo General Golbery do Couto e Silva na segunda metade dos anos 1960. O SNI centralizava e sistematizava as informações processadas pelos serviços secretos dos Ministérios militares e pelas Divisões de Segurança Interna (DSI) criadas no âmbito dos Ministérios Civis e pelas Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), o braço armado civil do regime militar.
Assim, a estrutura até o momento conhecida da comunidade nacional de informações considerava o SNI, visto como o elemento central da "inteligência" brasileira, auxiliado pelos demais órgãos setoriais, a saber: o Centro de Informações do Exército (CIE)1, o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), as diversas Divisões de Segurança Interna (DSI) e o DOPS. Todos esses organismos atuavam na coleta de informações no plano interno, objetivando descobrir e eliminar os focos de resistência à ditadura, por mais tênues que fossem. Para o desempenho dessas funções, um dos métodos mais utilizados foi a tortura física e psicológica, levada às últimas conseqüências.
Paralelamente à atuação dos serviços de informação que atuavam no plano interno, o regime militar brasileiro criou uma agência especializada para atuação no plano externo. Até hoje ignorado pela historiografia sobre o Golpe de Estado de 1964, o Centro de Informações no Exterior (CIEX), recebeu a incumbência de acompanhar as atividades dos "subversivos" brasileiros que, apesar do exílio, continuavam protestando contra a falta de liberdade política no Brasil e denunciando os maus tratos impostos pelo regime contra os seus oponentes.
O CIEX não surgiu do nada. À frente do Centro encontravam-se diplomatas de primeira linha do Ministério das Relações Exteriores que, inclusive, já detinha larga experiência no monitoramento das atividades de militantes do Partido Comunista Brasileiro no exterior – e, de forma geral, de análise da atuação do movimento comunista internacional.
É sobre o estudo deste elo da "comunidade nacional de informações" que trata este projeto. A análise de sua atuação e a revelação de sua existência, certamente ajudarão a iluminar e a melhor compreender um período vivo na história do Brasil recente, ainda hoje presente, de diversas maneiras, na vida política nacional.
Uma das principais questões levantadas inicialmente no âmbito desta pesquisa dizia respeito à origem e natureza das atividades do CIEX. Criado em 1966 com o objetivo explícito de dotar o Ministério das Relações Exteriores de informações estratégicas para ajudar na formulação e execução da política externa do país, na verdade o Centro teve como principal objetivo a monitoração das atividades dos exilados brasileiros que se encontravam em outros países e que faziam oposição ao regime militar brasileiro. Assim, o Centro de Informações do Exterior constituiu-se, ao lado dos órgãos de repressão estritamente militares (Exército, Aeronáutica e Marinha) e policiais (DOPS), como elemento essencial para a desarticulação e repressão aos grupos formados por exilados brasileiros ou que estivessem no exterior em busca de suporte para a luta contra a ditadura militar no Brasil.
O Ministério das Relações Exteriores, ao contrário do que seus dirigentes sempre afirmaram, adequou-se plenamente à estrutura ditatorial erigida pelos militares em 1964, colaborando e comprometendo-se intensamente com o regime, inclusive nos aspectos relativos à repressão.
As ações de espionagem desenvolvidas pelo CIEX permitiram aos órgãos da repressão (sobretudo ao Centro de Informações do Exército – CIE –, à Delegacia de Ordem Política e Social – DOPS – e ao Serviço Nacional de Informações – SNI) desarticular atividades dos militantes de esquerda brasileiros que atuavam no exterior e, eventualmente colaborou, mesmo que indiretamente, na prisão e/ou eliminação de alguns deles. Da mesma forma, houve um intercâmbio com agências congêneres estrangeiras, estipulando uma espécie de integração que, mais tarde, levou à criação da famosa Operação Condor, contudo, em outras bases.
O envolvimento do CIEX com agências estrangeiras de informações, principalmente dos países do Cone Sul da América (Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai), é um elemento a mais que ajuda a comprovar a existência da Operação Condor, a atuação coordenada de alguns órgãos repressivos da América do Sul envolvida na eliminação de ativistas contrários às ditaduras militares latino-americanas. O CIEX, como membro do Sistema Nacional de Informações, foi um dos participantes do sistema de cooperação repressivo montado pelos regimes "fortes" sul-americanos.
Operação Condor





fonte: http://brasil.indymedia.org/images/2008/03/415300.jpg acesso em 05/10/2009
A pesquisa demonstrou que ocorreu, além da atuação da repressão além-fronteiras, uma cooperação efetiva entre as agencias de segurança, envolvidas na perseguição, monitoramento, prisão ou eliminação de ativistas de esquerda, estivessem onde estivessem. Além disso, verificou-se um amplo grau de comprometimento do Itamaraty com a repressão, caindo por terra a alegação freqüente de que o Ministério das Relações Exteriores não participou de maneira ativa ao lado da repressão durante os anos de chumbo.
Pinochet
fonte: http://www.radio.usp.br/imagens/pinochet.jpg acesso em 05/10/2009

* Doutor em História das Relações Internacionais pela UnB e Professor de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso.
1 É muito comum a confusão na literatura entre o Centro de Informações do Exército (CIE) e o Centro de Informações do Exterior (CIEx), este vinculado ao Ministério das Relações Exteriores. A explicação mais provável para tal confusão reside no fato de que o CIEx é ainda um desconhecido, mesmo para a maior parte dos especialistas em 1964 e nos serviços de informações existentes no Brasil.

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