Pio Penna Filho*
O principal objetivo deste texto é examinar as características políticas, econômicas, sociais e culturais do colonialismo e seus efeitos sobre as sociedades africanas colonizadas. Tivemos como meta averiguar as principais premissas do sistema engendrado pelo capitalismo e sua penetração em sociedades não-capitalistas, de notada importância para a compreensão do momento histórico vivenciado pelo continente africano no final do século XIX e início do XX.
Doravante, procuraremos caracterizar e elaborar um histórico do colonialismo contendo seus principais fundamentos. Deseja-se, ainda, analisar os principais impactos provocados pelo mesmo nas nações africanas e como, aos poucos, por causas internas e externas, foi-se criando um clima preparatório para o término desse modelo de dominação.
O COLONIALISMO COMO SISTEMA E A ÁFRICA COLONIAL
O movimento de expansão colonial que teve origem na Europa do século XIX deve ser encarado como uma política inerente ao desenvolvimento do sistema capitalista num determinado momento de sua evolução. De forma geral, essa assertiva é aceita por grande parte dos autores que se dedicam ao tema. Uma primeira constatação é que o colonialismo do século XX foi produto direto dos impérios coloniais formados ao longo do século XIX.[1] E quais motivos levaram os europeus a formarem impérios com extensa rede de colônias espalhadas pelo mundo? Como foi dito acima, alguns países europeus atravessavam uma fase específica na evolução do capitalismo caracterizada pela busca de novos mercados, por fontes de matérias primas e por áreas de investimento de capitais, além de que naquele contexto histórico a Europa vivia uma época de “concorrência entre economias industrial-capitalistas rivais”[2], o que impulsionava ainda mais a busca por mercados monopolizados e que excluíssem outras nações industrializadas. Além disso, o espírito da época também foi caracterizado como de disputa e busca de status e prestígio internacional, aspecto que potencializou a gana por mais territórios promovendo uma verdadeira competição internacional.
As nações mais adiantadas da Europa procuravam resolver parte de seus problemas internos por meio do recurso do domínio de vastas áreas do planeta desprovidas de organização mais complexa, recursos de defesa e resistência que ameaçassem tal política. Com efeito, o desenvolvimento de várias nações européias alcançado nos séculos XIX e XX estão relacionados com a condição de nações colonizadoras.
Havia entre os europeus uma notória disputa por áreas coloniais. Essa corrida às colônias [3] entre as potências européias acelerou o processo de colonização, uma vez que lhes interessava garantir espaço econômico livre de riscos e prontamente exclusivo para o capital nacional, além de que significava, no plano internacional do final do século XIX, prestígio o fato de possuir territórios coloniais.[4] A partida para a conquista dos territórios no além-mar teve início com o estabelecimento de missões de exploração científica, de empreendimentos missionários cristãos e com a ação direta de empresas privadas com interesses econômicos nas áreas a serem colonizadas.[5] Foi este um processo longo e paciente que contou inclusive com a participação de lendários exploradores particulares. A propósito, essa participação é tida por alguns autores como de grande impulso para o processo de colonização.[6] Mas, o fato mais importante para o desenvolvimento do sistema colonial nessa fase, no nosso entender, se deu com a progressiva intervenção do Estado, por meio dos governos europeus, no empreendimento colonial. Sobretudo a partir de 1880 esse interesse foi crescente e decisivo para a conformação dos impérios coloniais.
A política colonialista resultou efetivamente da busca consciente de domínio de amplos territórios, numa lógica compatível com o estágio de evolução em que se encontrava o capitalismo europeu. Vários Estados participaram dessa política através de acirrada concorrência em que não faltaram momentos de grande tensão. Fruto de ato deliberado de conquista[7] os territórios subjugados tiveram modificadas profundamente as suas estruturas originais.
O colonialismo foi aos poucos assumindo a forma de sistema de dominação que açambarcava em seu bojo todos os níveis da vida dos povos colonizados, sejam eles políticos, econômicos ou culturais. A esse propósito é importante ter cuidado com o reducionismo econômico que aponta numa tendência a localizar nas motivações econômicas a única causa, objetivo ou efeitos de determinadas ações. A questão econômica é de inquestionável importância no contexto geral da colonização, mas objetiva-se expor que outros níveis de dominação, inter-relacionados com os fundamentos econômicos, exerceram grande influência no sistema colonialista europeu. Assim, é preciso estar atento ao fato da articulação dos vários tipos de dominação (econômico, cultural, político e militar) que reforçavam-se mutuamente.
Muito embora outros fatores efetivamente tenham contribuído para com a expansão européia, acreditamos que o fator econômico foi decisivo na execução e no sucesso dos projetos de dominação, haja vista que o fim último de todo tipo de colonialismo está estreitamente relacionado com a exploração. Esta é, com efeito, inerente ao sistema. De acordo com essa perspectiva, outros fatores apontados pelos próprios mentores da expansão colonial serviriam como objetivos secundários, conseqüências que só trariam vantagens e benefícios para os impérios coloniais. Esse parece ser, por exemplo, o argumento do escoamento do contingente populacional excedente e marginalizado das nações colonialistas. Havendo territórios que os absorvesse isto estaria contribuindo para solucionar, ou pelo menos amenizar, graves problemas sociais que poderiam ocorrer nas metrópoles motivados pela marginalização econômica e política a que considerável parcela da população havia sido submetida pelo capitalismo.
Há ainda que ressalvar que a ideologia justificadora da expansão colonial, num primeiro momento e, posteriormente, da manutenção deste sistema, foi se formando aos poucos e seguindo a dinâmica da evolução do colonialismo, respondendo às novas realidades que se apresentavam. Não houve, pois, a implementação de forma completa do sistema colonial em África, mesmo porque várias regiões, sobretudo as mais interioranas, ficaram relativamente à parte do jugo metropolitano. Alguns povos, geralmente nativos com tradição de deslocamentos permanentes, passaram praticamente incólumes ao sistema de dominação europeu.
Este estudo privilegia o colonialismo baseado no continente africano. Com efeito a África foi o continente onde mais devastadoramente as potências colonialistas se instalaram. Mais de 90% do continente ficou subjugado pelo menos por mais de meio século. A África foi partilhada e recortada em várias possessões pelas nações européias, cada qual buscando aquinhoar o máximo possível de territórios. Como afirma Maria Yedda Linhares “a África sofreu a espoliação mais completa que se conhece em homens, recursos e valores culturais.”[8]
Conquanto os europeus buscassem justificar a ação colonialista como “civilizatória”[9], imbuída de certa atitude redentora, fica evidente a questão econômica e política implícita na procura por mais riqueza e poder. Se por um lado buscava-se a garantia de mercados cativos, por outro o concerto europeu de disputas políticas por prestígio e status levava à expansão pelo controle de territórios. Se houve claro impacto no sentido do desenvolvimento das economias capitalistas européias em decorrência do colonialismo, haja vista enquadrarmos tal sistema num campo estrutural da fase pela qual passava o capitalismo na Europa, o impacto sofrido pelas nações africanas foi muito forte, mutatis mutandis, quando as comparamos com as transformações na Europa. De fato, toda uma formação econômica, política, social e cultural dos povos africanos foi bruscamente modificada pela nova situação. O impacto, pode-se dizer, foi devastador. Presas de um sistema de dominação baseado na violência e nas teses de superioridade racial, a economia, e mesmo todos os campos da vida colonial sofreram profundas modificações. A economia de subsistência, baseada nas relações de troca e basicamente voltada para suprir as necessidades internas foi deslocada e reorientada no sentido da exportação. Os investimentos feitos nas colônias eram direcionados de acordo com os interesses europeus, em ordem de maior vantagem econômica[10] do momento e sem nenhuma preocupação com os nativos e suas necessidades. Em muitos casos foi imposta a monocultura e se estabeleceu no continente um dos pilares do sistema capitalista: a propriedade privada. Essa estrutura colonial acabou por condicionar, em grande medida, o futuro do continente, mesmo passados muitos anos desde o fim do colonialismo.
Efetivamente o colonialismo promoveu a integração da economia natural das colônias às metrópoles, consolidando ao mesmo tempo a inserção da África no sistema capitalista mundial.[11] Aliás, é sob este ponto de vista que Marx e Engels vislumbravam a ação positiva do colonialismo, uma vez que por meio dele o capitalismo conseguia penetrar e destruir formas arcaicas e pré-capitalistas de produção, o que de certa forma preparava o caminho para a transformação futura do próprio sistema.[12] Muito embora moralmente condenável, havia algo de progressista, para Marx e Engels, no colonialismo.
Com as transformações econômicas impostas aos povos dominados estes se viram submetidos a um tipo de organização produtiva que privilegiava sobremaneira a exploração de uma força de trabalho absolutamente privada de direitos políticos e sociais. Woddis[13] analisa a expropriação da terra sofrida pelo africano em favor do europeu, e mostra como foi planejado o empobrecimento dos nativos, sua expulsão da terra e a quase total transformação do seu modo de produzir e das suas culturas originais. Ainda segundo esse autor, houve a introdução compulsória de trocas monetárias nos territórios coloniais. Os africanos eram obrigados a vender, e não mais a trocar - como havia sido a fórmula predominante no período pré-colonial - seus produtos. Isto em decorrência sobretudo do sistema de imposto individual, ou per capta, introduzido pelos europeus e que obrigava aos nativos, sob pena de prisão, o pagamento em dinheiro do imposto, forçando-o a vender sua produção ou trabalhar como assalariado pessimamente remunerado. Assim, essa imposição provocou o colapso na agricultura africana, com grande evasão de mão-de-obra do campo para os negócios europeus como minas, fazendas e empresas, sempre atividades voltadas para o mercado externo.[14]
Dentro das regras do sistema observa-se que a constituição do proletariado africano, ainda hoje muito incipiente, se deu da forma mais selvagem. O Estado colonial é um Estado acima de tudo a serviço da burguesia metropolitana e como tal exerceu uma política de baixos salários e de supressão dos direitos dos trabalhadores negros, desprovidos de assistência social e da possibilidade de organização sindical.
As antigas organizações políticas e sociais de base tribal das nações africanas foram, como sua estrutura econômica, subvertidas pelos colonizadores. Os chefes tribais ou foram cooptados ou afastados da liderança. A conveniência ao Estado Colonial situava-se como de primordial importância e a desestruturação das formas autóctones de organização social fazia parte da lógica da exploração das colônias. É necessário, no entanto, ressaltar a multiplicidade de povos e nações encontrados na África pelos europeus, bem como as diferenças dos próprios colonizadores. Mas muito embora os povos africanos se caracterizassem por diferentes estágios de evolução e variadas formas de convivência social, todos ficaram sujeitos, em última instância, aos mesmos fundamentos inerentes ao sistema colonialista. Com relação a essas diferenças entre europeus e africanos é preciso destacar que a ação dos primeiros não foi homogênea. Mesmo considerando que o colonialismo se define universalmente com sistema de dominação sendo, portanto, um ponto comum a todos os países que o praticaram, houve na África modelos próprios de domínio de acordo com cada Estado colonizador. Os mais clássicos foram o modelo inglês de administração indireta (Indirect rule), que procurava penetrar menos nas estruturas locais, preservando até certo ponto a organização original, desde que esta estivesse sendo útil ao sistema de dominação; e a administração direta (direct rule) empreendida principalmente pelos franceses, num tipo de controle que buscava alterar profundamente as estruturas locais, executando uma política que, em parte, contemplava a assimilação dos povos colonizados .[15]
Outra forma de ação colonialista, bem próxima ao modelo de administração direta, mas com características bem específicas e que merece citação, foi o modelo português. Com efeito, Portugal se destacou dos demais países colonialistas pela radicalidade com que executou o domínio na África. Perry Anderson denominou o seu modelo como “ultracolonialista”, isto é, em suas palavras: “simultaneamente a mais primitiva e a mais extremista modalidade de colonialismo.”[16]
Portugal foi uma das primeiras nações a chegar na África e uma das últimas a sair, mesmo sofrendo pesadas críticas e advertências principalmente no seio da ONU. A ditadura Salazarista, além de dar maior consistência ao sistema colonial de Portugal, tudo fez para prolongar ao máximo o domínio no ultramar, movendo inclusive longa e desgastante guerra contra os movimentos emancipacionistas nos territórios ocupados.
Característica bem específica do colonialismo português em África foi a de que sua ação neste continente não partiu da transformação interna da metrópole, isto é, Portugal não era uma nação industrializada que buscava mercados para seus produtos e fontes de matérias-primas para sua inexistente indústria. Nem muito menos se enquadrava na tese da exportação de capitais, haja vista não dispor de tais nem em seu próprio território. Perry Anderson, em obra já referenciada, chega a afirmar que “o padrão é o verdadeiro reverso de uma economia imperialista”[17], pois que a economia portuguesa girava em torno praticamente da exportação de matérias-primas e importação de produtos manufaturados, evidenciando um considerável grau de subdesenvolvimento. Do ponto de vista econômico relativo ao colonialismo português muitos autores reconhecem que o eixo central de sua atuação estava ligado a utilização maciça dotrabalho forçado dos povos dominados[18], o que se explica em parte pela escassez de recursos para investimentos em áreas mais complexas.
A utilização deste tipo de exploração se dava sob diversas formas. Por um lado, havia internamente - dentro dos territórios coloniais - o trabalho forçado tanto para a iniciativa privada quanto para o setor público, ou seja, as obras estatais eram em grande parte elaboradas a partir de um tipo de escravidão disfarçada, moderna mas não menos vil. Por outro lado, Portugal se notabilizou pela exportação desta mesma mão-de-obra forçada, que era enviada principalmente de Angola e Moçambique para as minas da África do Sul de acordo com os entendimentos entre autoridades portuguesas e sul-africanas.
Nessas condições, como afirma Ki-Zerbo “a exploração da mão-de-obra negra supriu aqui (nas colônias portuguesas), mais do que em qualquer outra parte, o fraco nível dos investimentos. Recorreu-se a todos os meios para ter trabalhadores, para os conservar e para deles tirar o máximo.”[19]
Outra fonte de recursos encontrada pelos portugueses para superar debilidades econômicas e conseguir auferir mais dividendos com as colônias foi abri-las com enormes vantagens para o capital internacional. Assim, várias empresas começaram a investir nos territórios sob controle de Portugal, em diversos setores da economia, como empreendimentos agrícolas e mineradores. Exemplo concreto é o da Companhia dos Diamantes de Angola (Diamang) na qual o capital internacional, neste caso anglo-saxão, belga e alemão, era predominante. Além dos diamantes, outros setores da mineração, como a extração de ferro e de manganês, estavam sob o mesmo controle.
Cite-se ainda que com relação ao principal argumento utilizado pelos lusos para justificar sua ação no além-mar, isto é, a crença na “missão civilizadora”, deve-se levar em conta que no campo da educação (os portugueses chamavam os professores que ensinavam nas colônias de “agentes civilizadores”) jamais se considerou realmente que ela fosse além do rudimentar, baseado em ensinamento primário e mesmo assim acessível a parcela muito reduzida da população. Vejamos, de agora em diante, deixando de lado o caso específico de Portugal e passando novamente a considerações mais gerais, como o sistema colonialista atuou em outros níveis além do econômico.
Do ponto de vista cultural a ação do colonialismo mostrou-se, igualmente à econômica, desestruturadora das formações originais africanas. O colonialismo cultural subordinava as diversas e variadas culturas africanas às dos europeus, considerando-se sempre estas como formas mais avançadas e superiores.
O desprezo pela cultura dos povos dominados ultrapassava o fato de simplesmente não considerá-la sequer como modelo original de “Cultura”. A idéia de que colonizar implicava “civilizar” estava, para os europeus, implícita no processo de conquista, como se ambas fossem sinônimos. Para eles, os povos que estivessem sob controle estariam recebendo a dádiva da cultura civilizada. Numa visão absolutamente discriminatória e na falta de melhor justificativa para o ato de domínio, o argumento da obra civilizadora e moralmente necessária para os povos ainda na infância, e portanto inferiores, era o mais empregado, afinal de contas fazia-se um ato caridoso e benevolente.
As conseqüências da penetração européia e da desestabilização dos sistemas culturais africanos comprometeram seriamente o futuro do continente. O sentimento de inferioridade inculcado nos africanos e imposto por amplas teias de dominação degenerou povos inteiros, amputando-lhes a liberdade, “destruindo” sua história e seu passado e causando uma “sensação de impotência”[20] que certamente ainda hoje influi no subdesenvolvimento africano.
A África, para o europeu e os demais povos que sempre viveram voltados para as glórias do passado deste continente, enxergando ali somente os grandes feitos, não possuía propriamente o que chamamos de História. A idéia era de que a história da África, assim como sua importância para o mundo, só passou a existir após a chegada dos colonizadores - civilizadores. Primeiro, quando foram buscar a mão-de-obra escrava para o trabalho forçado em outras áreas; segundo, de acordo com as novas transformações do sistema econômico, quando resolveram se instalar no próprio continente e dirigir um tipo diferente de exploração.[21]
Tentou-se construir sobre o continente negro uma ficção na qual a história deste confundia-se com a história da Europa. A história deles era, a bem da verdade, uma espécie de extensão da européia. Esta idéia chegou ao cúmulo do absurdo com os franceses ensinando aos africanos que os seus antepassados eram ninguém menos que os... gauleses. Assim se ensinava história nas escolas francesas nas colônias africanas, em flagrante gritante de manipulação e falsificação do passado. Manipulação esta sem dúvida objetivando referendar o domínio naquele presente e estendê-lo ao futuro.[22]
Contribuiu muito para a penetração cultural e espiritual dos europeus a ação dos missionários religiosos que desde a época das grandes navegações se dirigiram para a África com o pensamento de levar àqueles povos a pregação cristã. Carregavam consigo, além da doutrina cristã ocidental, a língua e os valores morais dos povos ditos “civilizados”. Como quem prepara o terreno para o plantio, esses missionários tiveram uma ação sumamente importante para o desfecho da história da colonização.
Nos aspectos religiosos, os europeus fizeram ver aos africanos que sua religião nada possuía de verdadeira, de sacra. Os cultos afros sempre assumiram perante os dominantes um significado e atitude de povo místico e primitivo, acima de tudo ignorante. No entendimento dos europeus era preciso salvá-los do animismo primário em que jaziam. Através da ação dos missionários, ao mesmo tempo em que pregavam sua religião, novos idiomas começaram a ser ensinados, agilizando o processo de adaptação ao sistema colonial.
Mas além do cristianismo ocidental, tiveram os africanos da África subsaariana de enfrentar o avanço sempre crescente do islamismo. Muitas vezes até mais bem sucedido. Entretanto a penetração islâmica se diferiu qualitativamente da cristã, mesmo que tenha encontrado em algumas áreas tanta rejeição quanto a religião ocidental. Uma das diferença mais importantes é que o islamismo nunca foi associado com projetos de expansão colonial, ou seja, de domínio. Além disso, houve a conversão genuína e autêntica de vários povos africanos ao Islã, em várias partes do continente, mas com grande concentração na África Ocidental e na Oriental, áreas adjacentes ao berço do islamismo e vinculadas aos povos árabes por meio de contatos comerciais seculares.
É preciso ainda considerar que no tocante à vida espiritual esta esteve estreitamente relacionada com o processo de dominação. Voltando mais uma vez ao exemplo de Portugal, porque talvez neste aspecto um dos mais presentes na relação de dominação, lembramos que as autoridades civis legaram às religiosas a responsabilidade pela conversão e alfabetização dos povos coloniais. Isto é uma evidência bastante contundente da associação entre a Igreja e Estado atuando conjuntamente na afirmação do sistema colonialista.
Contudo, a atuação dos cultos cristãos e do islamismo, à medida que se ia avançando o colonialismo e então aflorando-se mais claramente suas contradições, foi se modificando até se transformar, em muitos casos, como força contrária ao mesmo, acompanhando a dinâmica dos novos tempos e participando da fase da descolonização.
Continuando no nível superestrutural da análise do sistema colonialista faz-se necessário considerar o relevante papel exercido pela teoria do racismo nestas complexas relações entre colonizadores e colonizados. É preciso destacar que o racismo efetivamente caracterizou a situação colonial, principalmente porque servia como substrato ideológico do colonialismo. Ao dividir a sociedade em “homens” e “indígenas” (brancos e negros) o racismo, enquanto ideologia, estabeleceu lógica e coesão ao sistema colonial, o que serviu para justificar o mito da superioridade do branco sobre o negro.[23]
A despersonalização sofrida pelos colonizados é enfatizada por Albert Memmi[24] como conseqüência da ação do racismo, uma fórmula de subordinar o ser colonizado ao colonizador, uma vez que através do racismo o colonizado é levado a “descobrir”, e o que é mais importante, a acreditar que é diferente e inferior e que se trata de uma condição definitiva e absoluta, portanto nada restando a fazer para mudar esta situação, a não ser quando a complacência do colonizador permitisse a “assimilação” dos colonizados, que seriam, pois, elevados a uma situação teórica de igualdade.
Fanon[25] cita as teorias do Dr. A. Porot e de outros médicos e psiquiatras sobre a inferioridade biológica dos nativos da África do Norte. Para estes, os indígenas daquela região não passavam de seres primitivos, não-evoluídos e por isso delinqüentes. Seres - não é permitido chamá-los homens diante de tais teorias - que deveriam ser tratados e considerados de acordo com seu estágio de evolução, portanto submissos ao europeu plenamente desenvolvido. Como se pode observar, o racismo reinante no sistema colonialista vai além da retórica e procura abrigo “científico” em teorias médicas justificadoras da conduta do dominador.
O sentimento de inferioridade impingido aos colonizados foi um dos fatores de dominação de um sistema complexo que visava acima de tudo realçar a missão que os europeus se propunham na África e em outras partes do mundo. A relação de superioridade/inferioridade serviu como componente real e eficaz na ação colonizadora.
O racismo, para o sistema colonial, exerceu de fato uma função ideológica que foi a da discriminação racial com o intuito de justificar e reforçar a exploração econômica.[26] Além do mais, o racismo impregnava todo o meio social dos povos colonizados, o que se refletia não só no comportamento individual, quando acabavam perdendo todo o referencial histórico de sua comunidade para se espelhar na do homem branco.
Quando o colonizador estabeleceu a sua língua, cultura, modelo de organização político-social, economia, enfim, seus valores sobre os povos colonizados, a um só tempo desorganizou e dominou sociedades que há muito vinham se consolidando de forma bem original.
Ressalte-se que o ato de colonizar europeu, tendo sido justificado em parte pela idéia bastante questionável de “missão civilizadora”, não foi novidade inventada para a África. Antes disso já se viu o mesmo argumento sendo utilizado para se apropriar da riqueza e do trabalho de outros povos, como na colonização do continente americano, onde além da exploração, o genocídio de populações autóctones foi um fato indelével e ainda hoje vivo na memória de muitos.
Mesmo considerando que alguns aspectos do colonialismo possam ser admitidos como positivos, resta assinalar que o continente negro ainda hoje se encontra diante de muitos problemas que podem ser considerados como herança direta da presença branca e do seu sistema colonialista.
Enfim, das motivações que levaram os europeus a ocupar o continente africano pode-se relacionar pelo menos três fatores que, conjugados entre si, exerceram papel preponderante na ação colonizadora, quais sejam :
1) Motivação econômica, isto é, a fase pela qual passava o sistema capitalista europeu em expansão e busca de novos mercados, ao mesmo tempo em que se intentava aumentar as fontes de matérias-primas minerais e produtos agrícolas, além de áreas de investimentos para o capital excedente, numa tentativa de solução para graves problemas e contradições inerentes ao próprio sistema;
2) Motivação política, ou seja, aspiração de alguns políticos e diplomatas europeus que visavam ampliar o poder internacional de suas nações (status), além de aspirações de cunho pessoal;
3) Missão civilizatória européia. Argumento que na prática mais servia como justificativa do que como realmente motivadora do empreendimento colonial. Associada às explorações científicas e religiosas exerceu função ideológica importantíssima na ação colonialista.
* Doutor em História das Relações Internacionais e Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
[2]HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios 1875-1914. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.114.
[3]A disputa pelos territórios africanos foi "regulamentada" pela Conferência de Berlim, realizada nesta cidade entre 1884 e 1885, quando os europeus decidiram partilhar o continente africano. Ver a este respeito: BRUNSCHWIG, Henri. A Partilha da África Negra. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
[4]HOBSBAWM, Eric J. Op. Cit., p.102.
[5]BRAILLARD, P.; SERNACLENS, P. de. O Imperialismo. Lisboa: Europa-América, s.d, p.27.
[6]ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.153-336.
[11]SARAIVA, José Flávio S. Op. Cit., p.34.
[12]MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre o Colonialismo (vol.1), Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p.97-104.
[13]WODDIS, Jack. África - As Raízes da Revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1961, p.15-62.
[16]ANDERSON, Perry. Portugal e o Fim do Ultracolonialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.14.
[17]Idem, p.7.
[19]KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra II. Lisboa: Europa-América, 1972, p.137-8.
[22]Sobre a manipulação da História da África Negra pelos europeus e o esforço dos africanos para "descolonizar a História" ver FERRO, Marc. A Manipulação da História no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: Ibrasa, 1983, p.35-49. Após a independência, a respeito do resgate da História africana, Wolfgang Döpcke destaca o fato de que este foi um processo que envolveu esforço supranacional, com a participação de historiadores de dentro e de fora da África que trabalharam no sentido de reavaliar o passado africano à luz da nova realidade. Cf. DÖPCKE, Wolfgang. A História da África e sua historiografia: reflexões sobre os últimos Trinta Anos. Palestra proferida a 26/10/1994 no evento África: Anos 90- Democracia e Cidadania, realizado na Universidade de Brasília, de 26 a 28/10/94.
[24]MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
[26]MEMMI, Albert. Op. Cit., p.69.
Gostei muito da vossa oferta.
ResponderExcluirValeu, Bengui.
ResponderExcluirDU MAL ESSA DIVISÃO
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