domingo, 2 de maio de 2010

CRÔNICA
Rafael




“Os caminhantes, até mesmo os loucos, não errarão.” (Isaías, 35:8)
Há dois anos assistia futebol na sala com os filhos. Até que, de uma hora pra outra, passou a agir de maneira estranha, realmente esquisita. Uma tarde desapareceu. Ausentou-se durante dias. Foi encontrado vagando maltrapilho pelos arrabaldes. Desordenadamente, à procura de sua casa.
Sábado, três horas da tarde, a camisa aberta no peito, arrepende-se de atitudes remotas que tomara inconsequentemente – muitas, a esposa sequer imaginava que tivessem acontecido. Lamenta-se. “Eu não devia ter feito isso...” Revela segredos ocultos durante décadas.
Sentado na cadeira de balanço é flagrado pela velha. Dizia: “Túnica, vem cá. Vem cá, Túnica.” Como se alguém estivesse junto dele. Aos oitenta anos, os cabelos brancos, coitado, delira. Recebe com carinho a visita dos parentes mortos.
“Com quem você está conversando aí, Rafael?”, pergunta a velha. Na presença dos familiares, finge lucidez. “Eu?... com ninguém, ora. Quem disse?!”
“Não tem vergonha não, velho? Fica ai sozinho, dizendo bobagem, passa gente no portão vai pensar que você está ficando maluco!”
Humilhado, não demora muito ele entra para o quarto.
A todo momento se lembra de que é preciso ir embora. “Estão me chamando.” Quem?, indagam. Entre frases desconexas, balbucia: “Minha casa não é aqui”, e põe-se a girar no quintal; braços abertos, olhando para o céu. “Onde é então?”
Toma remédio controlado: tão forte, adormece no sofá assim que o ingere. “Só assim ele dá sossego.”
Acorda de madrugada, quatro horas está de pé. Se a esposa não acorda a tempo, ele abre a porta (pensando ser a do banheiro), urina dentro do guarda-roupa.
“Tenho que ir...”
Quando moço, orgulhava-se. Quase fora, como pracinha, combater na Segunda Grande Guerra. Quase. Fora convocado. Iria à Europa. Mas, nos dias que antecediam o embarque – enquanto se despedia dos parentes, com bravura: “Servir a Pátria” –, recebeu a triste notícia de que os nossos inimigos alemães já haviam sido derrotados, e ele não mais guerrearia contra os nazistas. Não mais se integraria à Força Expedicionária Brasileira. Nem haveria de ganhar pelo seu mérito medalha alguma. Hoje murmura: “Eu teria morrido na guerra.”
De hora em hora os filhos se revezam na sentinela. “Por que não morre logo?... Droga!” Quem dá as ordens é a mãe: “Não deixe ele aí sozinho.” “Hora do banho.” “Cuidado, tira essa faca da mão dele!” E se por acaso ele sussurra de novo: “Tenho que ir”, ela grita, de onde estiver: “Tranca o portão!” E logo alguém prestativo corre com o cadeado.
A esposa sofre junto. Todos os dias, pela manhã, passeia agarrada ao braço dele. De manhã, bem cedo. “Só com Lenita.” Senão protesta: “Me larga”, grita, quer fugir. Os vizinhos: “É normal”, dizem. “Nessa idade a gente volta a ser criança.” Então ela o leva ao passeio: “Pra ver se ele distrai.” Na volta, ouve-o consternada resmungar: “Minhas pernas doem, Lenita.” Depois, os dois velhinhos passam longas horas na varanda, defronte do pequeno jardim. Lá fora, sol forte às duas horas da tarde: ninguém na rua... A romã amadurece no pé. As flores, lindas! A samambaia. Uma folha seca desprende-se do galho, cai bem devagar no capim rasteiro. Um passarinho brinca alegre na grama. Ao voar, com alguma coisa no bico descreve meia parábola:
“Olha lá!”
“O que, Rafael?”
“Um passarinho.”

Odair de Morais é escritor e colabora com o DC Ilustrado.
Professor_odair@hotmail.com

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