A guerra do vintém
Exploradas por militantes
republicanos, manifestações contra taxa sobre transporte urbano tumultuam
capital do Império e deixam mortos e feridos pelas ruas
José Murilo de Carvalho
No dia 28 de dezembro de 1879, a
capital do Império viu algo inédito desde 1863, quando o Brasil rompeu relações
com a Inglaterra por conta da Questão Christie: a multidão protestando na rua.
A manifestação aconteceu no campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, em
frente ao palácio imperial. Cerca de cinco mil pessoas, lideradas por um
militante republicano, o médico e jornalista Lopes Trovão, reuniram-se para
entregar a d. Pedro II uma petição solicitando a revogação de uma taxa de 20
réis, um vintém, sobre o transporte urbano, ou seja, bondes puxados a burro. O
vintém era moeda de cobre, a de menor valor da época. A polícia não permitiu
que a multidão se aproximasse do palácio. Enquanto os manifestantes se
retiravam, o imperador mandou dizer que receberia uma comissão para negociar.
Mas Lopes Trovão e outros
militantes republicanos, buscando tirar o máximo proveito político da ação da
polícia, recusaram o encontro. Divulgaram um manifesto dirigido ao soberano,
convocando-o a ir ao encontro do povo. A Gazeta da Noite de Lopes Trovão e panfletos
distribuídos pela cidade passaram a pregar o boicote da taxa e a incitar a
população a reagir com violência, arrancando os trilhos dos bondes. Outra
manifestação foi convocada para o dia 1º de janeiro, data da entrada em vigor
da taxa, agora no centro da cidade, no Largo do Paço, hoje Praça 15 de
Novembro.
Nesse dia, a taxa estava sendo
paga até que, ao meio dia, a multidão se reuniu no local previsto. Percebendo
talvez a enrascada em que se metera, Lopes Trovão não incitou a multidão à
ação. A massa moveu-se, então, pelas ruas do centro aplaudindo as redações dos
jornais de oposição e se dirigiu ao Largo de São Francisco, ponto final de
várias linhas de bonde. Em frente ao prédio da Gazeta da Noite, o próprio
Trovão fez um apelo aos manifestantes para que se dispersassem. Mas àquela
altura ele já perdera o controle dos acontecimentos. A massa popular
concentrou-se nos arredores da Rua Uruguaiana e do Largo de São Francisco. O
delegado que comandava as tropas da polícia pediu reforços ao Exército, mas,
antes que a ajuda chegasse, ordenou à polícia que dispersasse a multidão a
cacetadas.
A um grito de “Fora o vintém!”,
os manifestantes começaram a espancar condutores, esfaquear mulas, virar bondes
e arrancar trilhos ao longo da rua Uruguaiana. Dois pelotões do Exército
ocuparam o Largo de S. Francisco, postando-se parte da tropa em frente à Escola
Politécnica, atual prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
O povo, que só detestava a polícia, aplaudiu a tropa. Mas alguns mais exaltados
passaram a arrancar paralelepípedos e atirá-los contra os soldados. Por
infelicidade, um deles atingiu justo o comandante da tropa, tenente-coronel Antônio
Enéias Gustavo Galvão, primo de Deodoro da Fonseca, militar que uma década
depois se tornaria o primeiro presidente do Brasil. O oficial descontrolou-se e
ordenou fogo contra a multidão.
As estatísticas de mortos e
feridos são imprecisas. Falou-se em 15 a 20 feridos e em três a dez mortos.
Entre os últimos, estavam estrangeiros e o flautista Loló, condutor da Cia. de
São Cristóvão, atingido por uma pedrada. A multidão dispersou-se e, salvo
pequenos distúrbios nos três dias seguintes, estava findo o motim do vintém. A
cobrança da taxa passou a ser quase aleatória. As próprias companhias de bondes
pediam ao governo que a revogasse. Desmoralizado, o ministério caiu a 28 de
março. O novo ministério revogou o desastrado tributo.
A capital do Império estava
acostumada a distúrbios de rua. Vivera em quase permanente agitação entre 1820
e 1840. Nessa última data, o povo exigiu na rua a maioridade do imperador. A
partir daí, no entanto, refletindo a estabilização política do Segundo Reinado,
reduzira-se muito a agitação. A tranqüilidade das ruas só fora quebrada nos
protestos contra Christie, quando a multidão, liderada por Teófilo Otoni,
ameaçou comerciantes ingleses e aplaudiu a ação do imperador. O que a trouxe de
volta em 1879?
Em 1878, depois de 10 anos de
domínio conservador, subira ao poder o gabinete liberal de Sinimbu, encarregado
de fazer a reforma eleitoral. Dividido por conflitos internos, desagradou a
gregos e troianos. Os republicanos estavam furiosos com Lafaiete Rodrigues
Pereira, ministro da Justiça, que assinara o Manifesto Republicano de 1870, e
agora se bandeava para o campo liberal. A principal fonte de insatisfação, no
entanto, vinha da política fiscal do ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis
Figueiredo, futuro visconde de Ouro Preto, que tinha fama de excelente
administrador e financista. Para enfrentar as dificuldades financeiras geradas
pelos enormes gastos com a grande seca de 1877 no norte do país, propôs ele no
projeto de lei orçamentária de 1879, aprovado pela Câmara, vários aumentos de
impostos antigos e a introdução de alguns novos. Atingiu o bolso de todos,
proprietários de escravos, aspirantes a títulos nobiliárquicos, fumantes,
amantes do vinho, comerciantes e simples cidadãos. As medidas mais irritantes
foram o novo imposto sobre vencimentos dos funcionários públicos, o antepassado
do imposto de renda, e a taxa de um vintém sobre o valor das passagens no
transporte urbano.
O novo imposto e a taxa atingiram
diretamente duas categorias, os funcionários públicos e os usuários de bondes.
Em 1870, a capital tinha 192 mil habitantes na área urbana, dos quais 11 mil
funcionários públicos, entre civis, militares e eclesiásticos, já que naquela
época o catolicismo era a religião oficial do Estado. Havia quatro grandes
companhias de ferro-carris urbanos, ou de bondes, como ficaram conhecidos: a
Botanical Garden Co., que cobria a zona sul, saindo da rua Gonçalves Dias, a
Cia. de São Cristóvão, concentrada na zona norte, com ponto final no Largo de
São Francisco, a Ferro-carril de Vila
Isabel, que partia da Praça Tiradentes, e a Cia. de Carris Urbanos, que atendia
ao centro, incluindo a zona portuária.
O bonde era um transporte de
massa. Cada carro, puxado por animais sobre trilhos, transportava 30
passageiros. Só as três primeiras companhias acima listadas transportaram em
1879 mais de 20 milhões de passageiros. É óbvio que a taxa do vintém jogava muita
gente contra o governo, sobretudo contra o Afonso Vintém, como ficou conhecido
o ministro da Fazenda. Para atingi-los, foram atacadas no dia primeiro as
companhias de bondes, com exceção da Botanical Garden, de propriedade
norte-americana, que se prontificou a pagar ela mesma a taxa.
Desse clima de insatisfação,
tiraram vantagem os agitadores republicanos. Ao que parece, na demonstração de
São Cristóvão estavam presentes, sobretudo, pessoas de melhor situação social,
certamente muitos funcionários públicos. Na do dia 1º, teria entrado em ação a
massa dos usuários mais pobres, acrescida da tropa barra-pesada do centro e da
zona portuária. Não por acaso, os líderes do movimento perderam o controle da
multidão nesse dia.
Embora legal, a taxa do vintém
era profundamente impolítica, como se dizia na época. O ministro fora alertado
para as possíveis reações. Mas Afonso Celso era tão competente quanto teimoso.
Pagou por isso alto preço em 1880, como pagaria em 1889, por ocasião da
proclamação da República. A reação da polícia foi infeliz em 28 de dezembro, ao
não negociar a audiência com o imperador, e imprudente em 1º de janeiro. A do
Exército, simplesmente desastrada.
Os acontecimentos chocaram o
Imperador. Em cartas à condessa de Barral e ao conde de Gobineau, afirmou que
em 40 anos de reinado nunca tinha sido usada a força contra o povo da capital
do Império. Não lhe escapou mesmo a conotação republicana dos incitadores do
motim. Afirmou à condessa que seria mais feliz como presidente de uma
república.
Mas a revolta não foi
republicana, afirmaram seus próprios líderes. Muitos interesses feridos nela se
fundiram, de grandes e de políticos, de gente miúda e de simples cidadãos. Uma
grande explosão social, detonada por um pobre vintém.
José Murilo de Carvalho é
professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da
Academia Brasileira de Letras, do IHGB e da Academia Brasileira de Ciências e
autor de D. Pedro II: ser ou não ser. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
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