domingo, 6 de março de 2011

Colonização portuguesa, escravismo e atividades econômicas: breve balanço historiográfico


Colonização portuguesa, escravismo e atividades econômicas: breve balanço historiográfico
Davidson de Oliveira Rodrigues
O presente texto procura sintetizar alguns dos principais debates acerca das estruturas econômicas da América Portuguesa. A pretensão é de mostrar como as diversas tendências historiográficas avaliaram as atividades econômicas da principal colônia de Portugal. A primeira consideração a ser feita é que algumas abordagens enfatizaram o funcionamento interno da colônia, ao passo que outras deram maior ênfase na sua ligação com a metrópole.
A obra de Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942) apresenta a colônia brasileira como totalmente submissa à metrópole portuguesa. A economia era estruturada objetivando somente a transferência de lucros para Portugal e sua base se assentava na exportação, monocultura e trabalho escravo. O mercado interno na colônia era praticamente inexistente.
Para Celso Furtado a colônia se organizava em função do mercado externo. Assim como Caio Prado Júnior, desqualificou o mercado interno e também se deteve na monocultura, latifúndio e escravidão. Esses autores, embora não neguem a existência de um mercado interno, atribuem-lhe uma baixa complexidade, identificando-o como uma forma rudimentar de subsistência.
O principal teorizador das relações entre as colônias e suas metrópoles foi Fernando Novais que cunhou, nos anos sessenta, o conceito de Antigo Sistema Colonial. Novais é o autor que irá supervalorizar o tráfico de escravos ao considerá-lo vital para o processo de concentração de rendas nas principais potências européias de então, através do fenômeno histórico chamado acumulação de capitais, que, por sua vez, acabará por desembocar na Revolução Industrial.
De uma certa forma, as obras desses três autores são complementares, principalmente se tomarmos Caio Prado e Fernando Novais. Para o primeiro a colonização tinha um claro sentido, que era o fluxo de matéria-prima da colônia para Portugal. Já Novais vê a colonização como instrumentos de poder do Estado, uma vez que ela possibilitaria enriquecimento e fortalecimento do Estado. Sua perspectiva polarizou as relações entre Europa e Novo Mundo em metrópole e colônia, sendo que a relação entre essas era unívoca, total dependência da segunda para com a primeira.
Essas abordagens foram popularizadas através dos livros didáticos e acabaram por construir uma representação do “passado colonial do Brasil”. Para esses autores, problemas como o latifúndio, o atraso econômico e a dependência ao mercado externo – presentes à época em que escreveram seus livros – tiveram sua origem nas relações entre a colônia e a metrópole portuguesa.
Essas interpretações tiveram a sua validade na medida em que delinearam alguns dos primeiros pilares da estrutura econômica da colônia brasileira. Uma série de conceitos derivou dessas abordagens, como, por exemplo, a noção de exclusivismo metropolitano e pacto colonial, que serviram para indicar os mecanismos que as metrópoles se valiam para subjugar seus anexos territoriais. Todavia, a partir dos anos 70, alguns autores começaram a repensar a idéia de excessiva dependência das colônias para com suas metrópoles. Passa a ser discutido a necessidade de se atentar para os processos internos das colônias. Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender discutirão a lógica interna das colônias. No âmbito das discussões marxistas surge o conceito de Modo de Produção Escravista Colonial, indicativo de que o foco desses autores se encontra nas formas de produção existentes nas colônias americanas.
A circulação de capitais e produtos no interior das colônias passa a ser estudado, preocupação que não se observa em estudos anteriores. Esses autores não concordam inteiramente entre si. Ambos atribuirão diferentes graus de autonomia às colônias, sendo que o de Gorender será mais restrito.
Ciro Flamarion Cardoso constatou dois setores agrícolas distintos, um voltado para exportação e outro destinado ao mercado interno, que abasteceria a própria população residente na colônia. O autor sutilmente relativiza o modelo da grande plantation, que até então era tomado como uma unidade produtora voltada exclusivamente para monocultura e exportação. Porém em publicações posteriores o questionamento de Flamarion será mais contundente ao denunciar a “obsessão plantacionista”. A idéia de monocultura e grande lavoura voltada para a exportação recebem suas primeiras críticas. Mas é Jacob Gorender que caracterizará mais detalhadamente o modo de produção escravista colonial. Sua discordância com Ciro Flamarion (ora em aspectos pontuais, ora em aspectos mais gerais) criará uma intensa polêmica, propiciando uma série de debates historiográficos. Gorender, assim como Flamarion, admitirá a concentração de renda na própria colônia (acumulação endógena), mas atribui menor importância ao mercado interno.
Quanto a plantation, Gorender considerou que apesar de especializada e voltada para o mercado externo, possui um espaço para a produção de alimentos, direcionado para o consumo interno. Uma necessidade estrutural que não alterou o fato da plantation ser componente da indústria agroexportadora. Desta forma Gorender foi o defensor do modelo da plantation.
Sem dúvida a plantation é um modelo teórico que privilegia as relações entre a unidade produtora colonial e o mercado externo. No caso do Nordeste ela está diretamente imbricada ao engenho. O “tipo ideal” do engenho é a fábrica de açúcar ligado à monocultura canavieira. Via de regra se associa a plantation e o engenho à imagem da casa-grande e da senzala com centos de escravos. Jacob Gorender, por exemplo, defende que a escravaria dos engenhos era numerosa.
O modelo clássico do engenho foi favorecido pela leitura, um tanto descuidada, de Cultura e Opulência no Brasil (1711) de Antonil. Nesse livro, o jesuíta descreve um grande engenho, com cerca de 150 a 200 escravos. Porém as observações de Antonil foram generalizadas e tidas como padrão, sem que outras fontes fossem consultadas. Hoje já é tido como certo que o engenho descrito é atípico. Porém em perspectivas anteriores o engenho era tomado como uma unidade de grandes proporções, com alto número de cativos e produção de açúcar considerável. A noção clássica de engenho, assim como a plantation, no entanto, não resistiu as evidências documentais. A unidade produtiva de açúcar existiu em variados tamanhos (há vários tipos de engenhos, sendo que destes o maior é o engenho real), mas de um modo geral com um pequeno a médio contingente de escravos. Simon Shwartz mostrou que os engenhos, em sua maioria, possuíam em média uns 60 escravos.
Como pode ser claramente percebido, esses dois conceitos (plantation e engenho), originalmente foram pensados a partir de uma lógica externa. Eles estavam diretamente ligados ao comércio do ultramar e a acumulação de capitais por parte da metrópole. Porém, a partir de uma problematização, ambos nos ajudam a compreender as especificidades das colônias, especialmente o Nordeste nos séculos XVIII e inícios do XIX.
Como já foi percebido, em Ciro Flamarion Cardoso, o modelo de grande lavoura sofreu um abalo. O mesmo autor foi também um dos primeiros a constatar uma maior diversidade de ocupações do escravo no sistema colonial, com a chamada brecha camponesa. Em meio a uma sociedade polarizada entre senhores e escravos se descobre a possibilidade de um outro espaço, através do proto-campesinato negro e indígena. O portocamponês seria o cativo que trabalha em uma situação de relativa autonomia, em uma condição próxima ao do camponês, ao ter a possibilidade de escolher o que plantar e aonde vender. A sua condição de escravo não é apagada, apenas amenizada.
A brecha camponesa era o espaço na plantation destinado a produção de alimentos para o consumo interno. O escravo produzia os seus provimentos e os do seu senhor, o que a princípio era favorável ao proprietário já que diminuía os gastos com a escravaria. Porém tal brecha no sistema escravista acabou por permitir ao escravo uma maior autonomia, já que ele acabou tendo a possibilidade de plantar não só para sua subsistência, mas também para o comércio, podendo inclusive se afastar do engenho para trocas comerciais. De um modo geral o proto-camponês não residia nas senzalas, mas em habitações próprias, a margem das plantations.
Esse espaço que o escravo passou a reivindicar foi alvo de tensões com os senhores de engenho, que tentavam se apropriar dos rendimentos dos cativos. Mas a possibilidade do escravo plantar para o comércio e acumular um pecúlio acabaou por se constituir em um direito, tornando a brecha camponesa constituinte do sistema escravista.
O que deve ficar claro é que o proto-campesinato, não foi uma forma dos escravos contestarem a ordem escravocrata, mas sim se adaptar a ela. Nesse sentido a brecha foi extremamente favorável para os senhores de escravos, já que ela funcionava como elemento de apaziguamento, evitando que o cativo – agora com próprios rendimentos, possibilitando uma possível alforria – fugisse ou se rebelasse.
Gorender (para variar) discorda de Ciro Flamarion Cardoso quanto à utilização do conceito de brecha camponesa10. Insiste no aspecto secundário da produção interna de alimentos e do seu mercado. Não podendo considerar o comércio de produtos realizado pelos escravos como estrutural, pois estes fatalmente seriam redirecionados para a lavoura e engenho nos momentos cruciais da produção açucareira. Assim a plantação e comércio feito pelos escravos tinham um aspecto sazonal, possível somente nos momentos em que as lavouras e usinas de açúcar não demandassem muitos braços.
Gorender quer acentuar o caráter terrificante da escravidão e enfatizar a predominância do mercado externo. Porém inúmeras outras pesquisas acabarão por se aproximar de algumas das premissas de Flamarion Cardoso. Na verdade este historiador é modesto no que diz respeito à amplitude da brecha, pois esta, na verdade é um “arrombo” que não se limita unicamente ao meio rural. A diversidade de ocupações dos escravos, em atividades desligadas dos setores de exportação, ajudou a delinear as configurações do mercado interno. José Newton Coelho Meneses, em um breve balanço historiográfico, apresenta dois autores que discordaram das perspectivas adotadas por Ciro Flamarion e Jacob Gorender. João Manuel Cardoso de Mello que discorda da existência de uma lógica própria na colônia, já que está inserida no modo de produção capitalista europeu. O outro historiador apresentado por Meneses é Jobson Arruda que discorda do conceito de modo de produção escravista colonial já que na colônia não há uma reprodução das relações de produção.
Importante observar a atualidade de Flamarion e Gorender nas discussões acerca da economia colonial, seja para defender ou questionar o vigor do mercado interno. O trabalho de João Luis Ribeiro Fragoso retoma, na década de noventa, algumas das preocupações de Ciro Flamarion. Em seu livro Homens de grossa ventura12, ele analisa os mecanismos da economia colonial que permitiram uma acumulação endógena em fins do século XVIII e início do XIX. Porém suas posições serão, em um segundo momento, seriamente criticadas.
Em um artigo escrito por pós-graduandos13 da UNICAMP inadequações e generalizações serão apontadas na obra de Fragoso e Manolo Florentino. A principal conclusão que se tira das críticas a Homens de grossa ventura é um questionamento da independência da colônia em relação à economia européia. Algumas generalizações são bem procedentes, pois a pesquisa de Fragoso se refere ao Rio de Janeiro após a Vinda da Corte, todavia as observações sobre essa conjuntura específica acabam sendo estendidas para todo o período e espaço colonial.
De qualquer maneira a obra de Fragoso faz parte de uma onda historiográfica seriamente preocupada em entender a dinâmica interna da colônia. Dentro dessas perspectivas foram fecundas as pesquisas acerca do abastecimento alimentar nas Minas Gerais, principalmente o século XVIII.
Na verdade pesquisas nessa temática já podem ser encontradas na década de 70, quando não na de 50 com o livro de Mafalda Zemella. Mas é de fato com o trabalho de Carlos Magno Guimarães e Liana Reis14 que a produção agrícola na região das Minas ganhou atenção. Esses autores serão os primeiros a apresentar a importância das pequenas plantações nas áreas de mineração. Mostram que com o declínio da mineração a agricultura tem um crescimento ainda maior, não sendo um mero apêndice da região mineradora.
Outros trabalhos, como o de Cláudia Chaves15 darão continuidade ao estudo da produção alimentar na Capitania das Minas Gerais. A historiadora recuperou uma série de ofícios ligados a produção e ao abastecimento de alimentos na capitania, como os atravessadores e as negras de tabuleiro, mostrando a diversificação da economia e sua relação com a área de mineração. O trabalho da autora está em consonância com estudos que demonstraram intensa circulação comercial na capitania.
Essas pesquisas, entre tantas outras, acabaram por demolir definitivamente as afirmações mais clássicas da historiografia, que consideravam a produção agrícola como de subsistência e deficitária. Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado considera a produção interna pouco desenvolvida e voltada somente para auto-subsistência. Outro livro superado pelas recentes pesquisas é Desclassificados do Ouro, de Laura de Mello e Souza, com suas premissas da pobreza e carestia das Minas.
A historiadora considerou que a maior parte do lucro obtido com a exploração aurífera migrava para Portugal. Nessa perspectiva a impossibilidade de acumulação endógena adicionada a ausência de núcleos de abastecimento que suprisse as demandas da população, tornava a mineração uma atividade pouco rendosa para os diretamente envolvidos em sua atividade. Portanto a idéia de falso fausto, já que o valor dos alimentos eram altíssimos uma vez que grande parte dos provimentos tinham que ser importados.
Flávio Marcus da Silva 18em um artigo analisou a preocupação das autoridades em fomentar a produção e circulação de alimentos já que ondas de fome poderiam promover levantes e motins. Esse trabalho, embora modesto, é mais um exemplo da necessidade da existência de núcleos produtores dentro da própria capitania. Porém é o livro de Meneses que explicitará a complexidade da produção alimentar na capitania. Meneses procura focalizar o produtor rural em seu mundo rústico, a produção e a circulação de alimentos.
Esses trabalhos foram aos poucos eliminando a imagem cristalizada de uma capitania coberta de ouro, mas faminta. O “falso fausto” não corresponde plenamente à verdade histórica já que a agricultura e agropecuária da capitania foram suficientes para seu abastecimento, além do que existia o comércio com outras capitanias (como Bahia), o que supria eventuais deficiências.
Curioso é que a preocupação com a produção agrícola nas Minas acabou por concentrar a atenção da maioria dos historiadores. Com efeito, a mineração foi colocada em segundo plano, o que ilustra uma ênfase maior nos processos internos da colônia. Arrisco o palpite de que as pesquisas acerca da produção mineral no século XVIII vêm sendo seriamente negligenciadas.
Se analisarmos com atenção as atuais pesquisas dialogam muito com os debates de Gorender e Flamarion Cardoso. Ambos pensaram, na década de 70, na intensidade do comércio interno, porém tomaram como complementar à indústria agro-exportadora. Duas décadas depois a situação se inverteu, o trabalho proto-camponês não é mais tido como uma singularidade, pois a diversidade de pequenos proprietários (brancos e mestiços ricos e pobres, cativos e libertos) trouxe a tona um mercado interno dinâmico, mesmo que dependente da economia metropolitana. Meneses, por exemplo, mostra que economia de subsistência e mercantil podem conviver simultaneamente (94-100).
Os argumentos que tentam enfatizar a preponderância do mercado interno ou externo estão em constante embate na historiografia econômica sobre o período. Embora seja óbvio, mas necessário de dizer, a economia colonial só pode ser compreendida a luz da historiografia.

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