Segredos não tão remotos
No período militar o Itamaraty criou um serviço de informações, dirigido por diplomatas, que atuava em estreita sintonia com o SNI
Pio Penna Filho - O Estado de S.Paulo
Alguns importantes documentos da história do Brasil permanecem guardados a sete chaves nos arquivos do Itamaraty, seja no Rio de Janeiro, seja em Brasília, por receio de que seu conteúdo possa arranhar a história do país e abrir supostas feridas já cicatrizadas pelo tempo. Em meio a um acervo rico e variado, de notável valor histórico, muito se diz sobre documentos ultrassecretos referentes à Guerra do Paraguai e às negociações em torno da aquisição do Acre durante a gestão do Barão do Rio Branco, documentos esses sempre citados e que poderiam comprometer seriamente a imagem de figuras ilustres da nossa história e, mesmo, da nossa tradicional diplomacia, sobretudo perante os vizinhos. Mas muito disso não passa, efetivamente, de lenda, de um verdadeiro mito criado justamente para justificar o sigilo eterno e absoluto de parte importante da história brasileira.
Em termos de segredos, esses são muito mais intensos quando olhamos para o período mais recente de nossa história do que para o passado remoto das definições de limites e de conflitos no século 19. Pouca gente sabe, por exemplo, que o Itamaraty, durante o período militar, criou um serviço de informações que atuava em estreita sintonia com o Serviço Nacional de Informações, o SNI. Assim, em 1966, criado e dirigido por diplomatas, o Centro de Informações do Exterior entrou em operação. Sua principal função era espionar os exilados brasileiros e dotar o sistema repressivo de informações sobre qualquer atividade política levada a efeito contra a ditadura no exterior. O Ciex produziu mais de 8 mil informes, todos sigilosos e devidamente tratados como segredo de Estado. Esses documentos permanecem até hoje afastados do conhecimento público, ou seja, ainda não fazem, oficialmente, parte da história recente do Brasil.
O acervo documental que está sob a guarda do Itamaraty se encontra dividido entre o Rio de Janeiro e Brasília. No Rio, onde se localiza o Arquivo Histórico, encontram-se as coleções documentais mais antigas, que compreendem os papéis colecionados do início do século 19 até os anos 1950. O acervo do Rio conta, também, com documentos ainda mais antigos, que remontam à época do Brasil Colônia. Além disso, naquela unidade estão guardadas as coleções de arquivos particulares adquiridos por compra ou doação como, por exemplo, o arquivo pessoal do Barão do Rio Branco. Documentos citados como "sensíveis" pelo ex-presidente Sarney estão lá.
Em 1972, com a transferência do Ministério das Relações Exteriores para a nova capital, parte da documentação produzida pelo Itamaraty foi deslocada para Brasília. Assim, foi criado um segundo arquivo, então denominado Arquivo do Ministério das Relações.
Exteriores, abrigando em seu acervo a documentação mais recente. Uma peculiaridade do Itamaraty é que, mais do que qualquer outro ministério, ele próprio é uma grande central produtora de informações. Abastecido frequentemente por ofícios, telegramas, cartas-telegramas, relatórios e outros documentos remetidos pelas representações no exterior, foi-se criando aos poucos um acervo fantástico que contempla diversos assuntos relacionados à inserção internacional do País em suas múltiplas vertentes.
Um dos grandes problemas desses arquivos é a dificuldade de acesso aos seus acervos. Inexiste uma política clara e transparente quando qualquer cidadão solicita autorização para pesquisar, seja ele um estudante de pós-graduação, um historiador, um jornalista ou qualquer pessoa que queira, por qualquer razão, obter informações diretamente das fontes primárias.
A dificuldade aumenta à medida que nos aproximamos do tempo presente. No Rio de Janeiro, embora o acesso seja menos complicado, há o problema de que muitos documentos, mesmo referentes ao século 19 e ao início do século 20, simplesmente não são entregues aos pesquisadores. Em Brasília, os empecilhos são ainda mais graves.
Como não há um quadro de funcionários especializados que dê conta do arranjo, desclassificação e liberação de documentos, o cidadão fica, virtualmente, impedido de ter acesso a boa parte da documentação existente.
A atual discussão sobre documentos secretos, sigilo eterno e direito à informação tem um aspecto muito positivo que é o de permitir que a sociedade discuta seu passado, mas com as atenções voltadas para o presente e para o futuro, numa perspectiva republicana, na qual o direito à informação é um dos pré-requisitos básicos para o pleno exercício da cidadania. Nesse sentido, nada mais oportuno do que podermos conhecer mais a fundo como o Brasil se relacionou e se relaciona com outros países, povos e culturas.
Não há razão, além da tradição, para que o Itamaraty continue como guardião da parte considerada histórica de seus acervos. Melhor, mais transparente e mais republicano seria sua transferência para o Arquivo Nacional, onde os documentos diplomáticos seriam tratados por profissionais qualificados e disponibilizados sem os descabidos receios motivados pela gestão corporativa.
PIO PENNA FILHO É PROFESSOR DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB) E PESQUISADOR DO CNPQ
texto publicado originalmente na edição de 03/07/2011 do jornal O Estado de São Paulo
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