terça-feira, 29 de setembro de 2009

Análise da música "Zé Ninguém" da banda Biquini Cavadão

Análise da música "Zé Ninguém" da banda Biquini Cavadão




Zé Ninguém
Biquini Cavadão

Quem foi que disse que amar é sofrer?
Quem foi que disse que Deus é brasileiro,
Que existe ordem e progresso,
Enquanto a zona corre solta no congresso?
Quem foi que disse que a justiça tarda mas não falha?
Que se eu não for um bom menino, Deus vai castigar!
Os dias passam lentos
Aos meses seguem os aumentos
Cada dia eu levo um tiro
Que sai pela culatra
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo, as leis são diferentes
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo, as leis são diferentes
Quem foi que disse que os homens nascem iguais?
Quem foi que disse que dinheiro não traz felicidade?
Se tudo aqui acaba em samba, no país da corda bamba, querem me derrubar!!
Quem foi que disse que os homens não podem chorar?
Quem foi que disse que a vida começa aos quarenta?
A minha acabou faz tempo, agora entendo por que ....
Cada dia eu levo um tiro
Que sai pela culatra
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo, as leis são diferentes (4X)
Os dias passam lentos
Os dias passam lentos
Cada dia eu levo um tiro
Cada dia eu levo um tiro
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo, as leis são diferentes...


Composta no ínicio da década de 1990 essa música permanece atual uma vez que ainda hoje quase vinte anos após o lançamento da canção ainda assistimos estupefátos ao grassamento da corrupção política, a concentração de renda, o descaso das autoridades constituídas para com os menos favorecidos.
O eu-lírico da canção encarna um típico brasileiro da classe baixa que encontra-se desacreditado com o futuro, não apenas com o seu próprio futuro, mas com o futuro da nação como um todo. Descredito com a atuação do Congresso Nacional e com a morosidade e conformismo da justiça brasileira e até mesmo sua crença em Deus encontra-se abalada diante do contexto social em que vive.


Candidato Zé Ninguém.
"Os dias passam lentos/Aos meses seguem os aumentos/Cada dia eu levo um tiro/Que sai pela culatra/Eu não sou ministro, eu não sou magnata/Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém/Aqui embaixo, as leis são diferentes/Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém/Aqui embaixo, as leis são diferentes", nesse trecho da música os compositores apresentam um panorama do Brasil daquele período com a inflação galopante, a desigualdade econômica e os desmantos dos políticos corruptos em nosso país.




Charge satirizando a situação política e social do Brasil na atualidade.





O contexto histórico em que a música foi escrita é a do início da última década do século XX, onde o Brasil vivia a expectativa da consolidação definitiva da democracia em nosso país, com a aprovação da Constituição de 1988, a "constituição cidadã" como designou Ulysses Guimarães. Vivia-se também uma expectativa sobre o governo de Fernando Collor, eleito democraticamente em 1989. O governo Collor foi marcado pelo início do neoliberalismo e da globalização econômica em nosso país. Outro ponto marcante de sua administração foram os planos econômicos que visavam conter a inflação galopante e estabilizar a nossa moeda.

A corrupção e o famoso esquema PC foi outro ponto relevantemente negativo do governo Collor o que acabou por conduzí-lo ao processo de impechment depois de ampla participação da juventude brasileiro em um movimento conhecido como "caras pintadas".

sábado, 26 de setembro de 2009

Interpretação da música "Infinita Highway" da banda Engenheiros do Hawaii - uma viagem intimista ao conhecimento sobre nossa vida

Infinita Highway - Engenheiros do Hawaii

Você me faz, correr demais
Os riscos desta Highway
Você me faz, correr atrás
Do horizonte desta Highway
Ninguém por perto
O silêncio no deserto
Deserta Highway…
Estamos sós
E nenhum de nós
Sabe exatamente
Onde vai parar
Mas não precisamos
Saber prá onde vamos
Nós só precisamos ir
Não queremos
Ter o que não temos
Nós só queremos viver
Sem motivos, nem objetivos
Estamos vivos e isto é tudo
É sobretudo, a lei
Da Infinita Highway…
Quando eu vivia
E morria na cidade
Eu não tinha nada
Nada a temer
Mas eu tinha medo
O medo dessa estrada
Olhe só, vê você
Quando eu vivia
E morria na cidade
Eu tinha de tudo
Tudo ao meu redor
Mas tudo que eu sentia
Era que algo me faltava
E à noite eu acordava
Banhado em suor…
Não queremos
Lembrar o que esquecemos
Nós só queremos viver
Não queremos
Aprender o que sabemos
Não queremos nem saber
Sem motivos, nem objetivos
Estamos vivos e é só
Só obedecemos a lei
Da Infinita Highway
Highway! Highway!…
Escute, garota
O vento canta uma canção
Dessas que uma banda
Nunca toca sem razão
Me diga, garota
Será estrada, uma prisão?
Eu acho que sim
Você finge que não
Mas nem por isso
Ficaremos parados
Com a cabeça nas nuvens
E os pés no chão…
-Tudo bem, garota

Não adianta mesmo ser livre…
Se tanta gente vive
Sem ter como viver
Estamos sós e nenhum de nós
Sabe onde quer chegar
Estamos vivos, sem motivos
Que motivos temos prá estar?
Atrás de palavras escondidas
Nas entrelinhas do horizonte
Dessa Highway
Silenciosa,
Highway!Highway!…
Eu vejo o horizonte trêmulo
Eu tenho os olhos úmidos
Eu posso estar
Completamente enganado
Eu posso estar correndo
Pro lado errado
Mas a dúvida
É o preço da pureza
E é inútil ter certeza
Eu vejo as placas dizendo
Não corra, não morra
Não fume
Eu vejo as placas
Cortando o horizonte
Elas parecem facas
De dois gumes…
Minha vida é tão confusa
Quanto a América Central
Por isso não me acuse
De ser irracional
Escute, garota
Façamos um trato
Você desliga o telefone
Se eu ficar muito abstrato
Eu posso ser um Beatle
Um beatnik, ou um bitolado
Mas eu não sou ator
Eu não tô à toa
Do teu lado…
Por isso garota
Façamos um pacto
Não usar a Highway
Prá causar impacto
110, 120, 160
Só prá ver, até quando
O motor aguenta
Na boca em vez de um beijo
Um chiclete de menta
E a sombra do sorriso
Que eu deixei…
Numa das curvas
Da Highway Highway!
Infinita, Highway! Highway!
Infinita, Highway! Highway!
Highway! Highway!

Capa do álbum dos Engenheiros do Hawaii



Essa música explicita toda a genialidade de Humberto Gessinger em uma letra que traz inúmeras reflexões filosóficas. Foi um grande suceso no final da década de 1980 e influenciou a vida de milhares de jovens brasileiros.
Prá início de conversa é bom tentar compreender o significado do título da canção: "infinita highway" que indica a não terminalidade da estrada da vida devido à grande amplitude de experiências que ela pode nos proporcionar, caso estejamos dispostos a vivê-la com intensidade.
Já no princípio da letra "correr demais os riscos desta highway" e "correr atrás do horizonte desta highway" são momentos emblemáticos, afinal de contas vida sem risco é uma vida inssosa e vazia, que torna a nossa existência sem sentido. Por outro lado o horizonte é aquele lugar onde nunca se chega, sempre está mais a frente, a ser alcançado, algo a ser vislumbrado mais adiante, é o que se pode chamar de plena felicidade, realização plena talvez, e essa nossa busca é incessante e insaciável ao longo de nossa existência.

Vários caminhos, várias direções, o preço da dúvida.



A vida não é algo automatizado, previsível, pragmático não para quem quer viver de verdade. É quase como um vôo no esculo, cheio de perigos, repleto de riscos no entanto benefício daquilo que aprendemos e vivemos no caminho é muito maior.




Uma carona nessa longa highway.





Companhia nessa estrada.

Humberto Gessinger, líder da banda Engenheiros do Hawaii
Ray - A afirmação de um negro na sociedade americana do século XX

O roteiro segue duas linhas narrativas ao mesmo tempo. Enquanto em flashbacks são mostradas cenas da infância do artista, há um outro sequencial que vai mostrando ele já na fase adulta se aventurando como músico. Evidentemente o rumo do filme é linear, como toda biografia cinematográfica que siga os padrões convencionais do gênero, apesar desses eventuais flashbacks que acabam incomodando um pouco uma vez que quebram constantemente o ritmo do filme e deixam a sequência principal um tanto quanto fragmentada.
Nesses flashbacks são mostrados a difícil vida do garoto negro sulista que acaba sendo acometido por um grande trauma de infância (e que no filme esse trauma acaba influenciando decisivamente a vida do músico, a ponto dele ter certas alucinações estapafúrdias e bastante difíceis de terem veracidade). O diretor Hackford inclusive acerta ao fazer a grande interseção entre as duas linhas narrativas no momento certo, onde algumas dúvidas são eliminadas. Já no tempo cronológico principal acompanhamos a difícil realidade que Charles teve ao tentar a carreira sendo cego e quase sempre enganado. Depois, acompanhamos seu crescente sucesso até se tornar uma figura exponencial na música internacional, sem se deixar de abordar os seus problemas com drogas, seu casamento problemático e suas experiências extra-conjugais.

Ray Charles no auge de sua carreira.


Assista abaixo um grande sucesso da carreira de Ray Charles




Recorde outro grande sucesso de Ray Charles




Ray Charles no final da carreira.

Ao trazer à baila a história de Ray Charles, o filme proporciona grandes contribuições para o estudo do indivíduo, da sociedade e do seu desenvolvimento, principalmente na racista sociedade norte-americana do século passado.
Ray Charles, nasceu no seio das classes menos favorecida do Sul dos Estados Unidos, no estada da Georgia. Órfão de pai e criado pela mãe que se desdobrava para sustentá-lo, sofreu uma traumática perda por ocasião da morte acidental do irmão mais novo que afogou-se numa bacia cheia de água, fato que fez com Ray se culpabiliza-se pelo restante de sua vida, e como desgraça pouca é bobagem, ainda menino começou a gradativamente perder a visão até ficar totalmente cego.
Como pode-se imaginar a vida de um jovem pobre, negre e cego numa sociedade racista e preconceituosa não foi nada fácil e Ray Charles teve que trilhar um árduo caminho cheio de perigos e armadilhas para conseguir realizar parte de suas ambições.
Capa de um dos álbuns de Ray Charles.
Seu grande talento para a música proporcionou-lhe começar uma trajetória em busca do sucesso. Superou diversas barreiras para que ele homem pobre, negro e cego fosse aceito na sociedade, escrevendo em sua biografia uma verdadeira uma lição de vida e de sobrevivência.
Ray enfrentou as discriminações da sociedade em diversos momentos de sua vida, à exemplo, quando entrou num ônibus e o motorista se recusava levá-lo pelo fato dele ser negro e cego, outro episódio interessante e relatado no filme ocorre quando o dono do primeiro bar que ele cantou o chamava de negro, nos pagamentos que recebia costumeiramente tentavam enganá-lo, ou seja, várias foram as situações impostas pela preconceituosa sociedade norte-americana durante a trajetória de Ray Charles.


A sociedade capitalista já no século passadoem procurava moldar o indivíduo de acordo com os bens materiais que o mesmo possuía e a posição ocupada por ele na tecitura social. Nesse período o processo de luta de classes já estava em ebulição, os negros se mobilizavam para lutar pelos seus direitos e pela efetiva inclusão na sociedade. Outro episódio interessante relatado na película em questão ocorreu quando da recusa de Ray em se apresentar numa cidade onde os negros estavam impedidos de comparecer ao seu show numa clara demonstração de racismo das autoridades locais, essa atitude de Ray Charles repercutiu positivamente para o movimento de afirmação dos direitos dos negros norte-americanos. Ray recebe um pedido de desculpas do Estado que reconhece que sua atitute contribuiu decisivamente para alterar a visão da sociedade de seu país em relação aos negros e passar a encará-los com cidadãos, entretanto sabemos que inumeras lutas de importantes lideranças negras tais com Martin Luther King e Malcon X foram fundamentais.


O filme nos permite acompanhar não só a trajetória de Ray Charles que superou seus límites e enfrentou diversos preconceitos para se afirmar enquanto cidadão e exercer efetivamente seus direitos. Atualmente vemos o desenrolar de um novo tempo, a ascenção de Barack Obama, um presidente da República de ascendência negra, inaugura uma expectativa bastante positiva não apenas para a sociedade norte-america, mas para todo o planeta, onde possamos respeitar nossas diferenças e possamos construir um mundo melhor.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Wind of Change
Tempos de Mudança no Leste Europeu


Capa do álbum da banda Scorpions.




Gorky Park durante o rigoroso inverno russo.



Queda do Muro de Berlim em 1989.





Wind of Change é um disco single de 1990 gravado pela banda alemã Scorpions. A balada foi escrita por Klaus Meine, inspirando-se nos "ventos de mudança" que atingiam a Europa, com a Guerra Fria terminando, o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim. A música foi lançada no álbum Crazy World em 1990, e regravada nos discos recentes Moment of Glory que teve participação da Filarmónica de Berlim no disco Acústico em 2001.
A banda também gravou uma versão em russo dessa canção, sob o título Ветер Перемен (Veter Peremen) e outra versão em espanhol chamada Vientos de Cambio.
A canção é o décimo single mais vendido em todos os tempos na Alemanha. O Gorky Central Park de Cultura e Lazer é um parque monumental em Moscou em homenagem aos escritor Máximo Gorky.
A letra celebra as mudanças políticas ocorridas no Leste Europeu naquela época - como as discussões políticas que levaram a queda do Muro de Berlim, e o retorno da democracia nos países que faziam parte da bloco socialista sob a liderança da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e o iminente abrandamento e colapso final da Guerra Fria.

Imagem do rio Moskva.


Moskva é o nome do rio que atravessa Moscou, e o Gorky Park é um parque da cidade. A banda Scorpions inspirou-se para escrever esta canção em uma visita que fez a Moscou em 1989 e assim incluiram referência a paisagens naturais e urbanisticas da cidade na letra da canção.


CONTEXTO HISTÓRICO
Nos anos 80 começava a se configurar o quadro político internacional que viria a culminar no fim da Guerra Fria, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, em 1989. O fim do muro foi resultado do intenso processo de reformas na União Soviética, iniciado em 1985 pelo dirigente Mikhail Gorbatchev.
No plano econômico, Gorbatchev instituiu a Perestroika, ou Reconstrução, buscando novas formas de conduzir a economia soviética. No plano político, retomou negociações para colocar fim à corrida armamentista. Internamente, libertou opositores do regime, viabilizou o abrandamento da censura e permitiu que os problemas fossem discutidos abertamente pela população. As reformas iniciadas em Moscou logo se refletiram na Europa socialista, onde os movimentos democráticos ganharam força para mudar todo o panorama político do antigo bloco soviético. Esse processo iniciado por Gorbatchev culminou no fim da própria União Soviética, em 1991. A partir daí, os Estados Unidos, vencedores da Guerra Fria, tornaram-se a única superpotência mundial e encontraram novos inimigos contra os quais lutar, como os fanáticos do Islã, de um lado, e os narcotraficantes, de outro lado. Ou seja, novos elementos para a mesma fórmula do Bem e do Mal dos tempos da Guerra Fria. É um mundo que enfrenta novos problemas, como o ressurgimento de conflitos nacionais e étnicos; a disputa entre blocos econômicos; e as grandes máfias que controlam o crime organizado internacional. Para entender esse mundo temos de voltar nossos olhos ao passado recente e fazer uma reflexão que, talvez, nos indique o caminho para um futuro melhor.




Scorpions - Wind of Change
Bad For Good: The Very Best of Scorpions, 20th Century Masters - The Millennium Collection: The Best of Scorpions, Crazy World


I folow the Moskva
Down to Gorky Park
Listening to the wind of change
An August summer night
Soldiers passing by
Listening to the wind of change
The world is closing in
Did you ever think
That we could be so close, like brothers
The future's in the air
I can feel it everywhere
Blowing with the wind of change
Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow dream away
in the wind of change
Walking down the street,
Distant memories
Are buried in the past, forever
I folow the Moskva
Down to Gorky Park
Listening to the wind of change
Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow share their dreams
With you and me
Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow dream away
in the wind of change
The wind of change
Blows straight into the face of time
Like a stormwind that will ring
The freedom bell
For peace of mind
Let your balalaika sing
What my guitar wants to say
Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow share their dreams
With you and me
Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow dream away
in the wind of change.


Wind of Change(1990)
Scorpions - Wind of change (Ventos da mudança)
Bad For Good: The Very Best of Scorpions, 20th Century Masters - The Millennium Collection: The Best of Scorpions, Crazy World

Até o Parque Gorky
Escutando o vento de mudança
Uma noite de verão de Agosto
Soldados ignorando
Escutando o vento de mudanças
O mundo está se aproximando
Você já pensou
Que nós pudéssemos estar tão perto, como irmãos
O futuro está no ar
Eu posso sentir isto em todos lugares
Soprando com o vento de mudanças
Leve-me para a mágica do momento
Em uma noite gloriosa
Onde as crianças de amanhã sonham no vento de mudanças
Caminhando rua abaixo
Recordações distantes
Estão enterradas no passado para sempre
Eu segui o Moskva
Até o Parque Gorky
Escutando o vento de mudanças
Leve-me para a mágica do momento
Em uma noite gloriosa
Onde as crianças de amanhã compartilham seus sonhos
Com você e eu
Leve-me para a mágica do momento
Em uma noite gloriosa
Onde as crianças de amanhã sonhamno vento de mudanças
O vento de mudanças
Soprando diretamente na face do tempo
Como uma tempestadeque tocará a campanhia de liberdade
Para a paz da mente
Deixe sua balalaica* cantar
O que meu violão quer dizer
Leve-me para a mágica do momento
Em uma noite gloriosa
Onde as crianças de amanhã compartilham seus sonhos
Com você e eu Leve-me para a mágica do momento
Em uma noite gloriosa
Onde as crianças de amanhã sonham
no vento de mudanças
*instrumento de origem russa

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

POÉTICA MUSICAL, LAZER E COTIDIANO
Giuliano Gomes de Assis Pimentel
Larissa Michelle Lara
ENTRE MUROS E GRADES DO COTIDIANO

A incursão pela poética musical e sua relação com o cotidiano é iniciada, neste texto, com Ouro de Tolo, de Raul Seixas e Paulo Coelho. O descontentamento com o rumo da vida cotidiana aparece em um "dito cidadão respeitável", empregado, ganhando C$ 4000,00 (renda da classe média na época) mensais, morando em Ipanema e podendo levar a família ao Zôo com seu corcel modelo 73: "Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo pra ir com a família no jardim zoológico dar pipocas aos macacos [...] Ah, mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado: macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco".
Embora devesse estar contente por ter vencido na vida, a pessoa revela-se decepcionada por achar que sua acomodação diante dos sonhos de consumo da pequena burguesia é "uma grande piada e um tanto quanto perigosa". Outros elementos estão presentes no descontentamento: a facilidade com que conseguiu suas expectativas e a consciência de existirem outras a conquistar. Por essas razões, não há satisfação com o estado de coisas, mas, ao contrário, se olha no espelho e percebe as limitações do corpo cravadas por um sistema social cheio de conformações.
Numa interpretação psicanalítica da narrativa inconsciente de um indivíduo, cujas características apontam para o dito cidadão referenciado em Ouro de tolo, Merengué (2002, p. 58) lembra o sonho de um homem que se encontra em miniatura fugindo dos jatos d’água que regam o gramado. Embora essa pessoa se apresente impotente e sem recursos, ela é, na realidade, "um profissional de sucesso, adulto, com dinheiro suficiente para consumir um carro importado, com vida afetiva e heterossexual". Enfim, é um indivíduo aparentemente realizado.
Porém, como num espelho, o sonho reflete a realidade de forma invertida. Afinal, vivemos em tempos nos quais o liberalismo aponta para um indivíduo capaz de obter sucesso, indicando quais são os padrões materiais para medi-lo. A impotência expressa pelo sonho representa, então, o peso da cobrança sobre o indivíduo, dado que a sociedade exige o consumo de determinados signos reveladores de poder, juventude, atitude, saúde, beleza, entre outras marcas de status. Daí o sonho revelar-se um paradoxal pesadelo: quando finalmente se chega a uma organização social na qual o indivíduo pode ser o que quiser, ele fica preso na rede dos modos de vida. Por isso, o trabalho acaba sendo meramente uma busca por recursos a serem exibidos em lazeres prestigiosos e caros, mas previsivelmente redundantes. (MERENGUÉ, 2002).
O inconsciente do indivíduo parece por desvelar o próprio espírito do tempo presente de toda uma sociedade. Nela estão os ditos cidadãos respeitáveis que, não obstante possuírem carro da moda, morarem em local nobre e terem bom salário, acabarão, conforme Ouro de tolo, sentados num "trono esperando a morte chegar". A "decepção" e o "pesadelo" de não encontrar satisfação pessoal quando se chega aos padrões médios de sucesso, delatam o vazio sentido pelo indivíduo ao se dar conta que a adesão a estilos de vida não cumpriu sua promessa de felicidade.
Em Muros e grades, música de Humberto Gessinger (ENGENHEIROS DO HAWAI, 1998), a questão do esvaziamento do social cujo cotidiano perde significados, redundando em um lazer igualmente insosso, reaparece lembrando os perigos de uma vida sem sentido:

Nas grandes cidades, no pequeno dia-a-dia,
O medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia.
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia.
Nas grandes cidades de um país tão violento,
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo,
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada.
E nada nos protege de uma vida sem sentido.
Um dia super, uma noite super, uma vida superficial
Entre as sombras e entre as sobras da nossa escassez.

Embora a letra seja esclarecedora em si mesma, vale destacar a frase "o medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia". Da mesma forma que o lazer é fruto da industrialização e da urbanização, esses dois fenômenos estão igualmente associados à violência. Esta gera medo, intimidação, levando as pessoas a ousarem menos e a limitar sua entrega às coisas da vida, inclusive à fantasia como forma de concretização de desejos nem sempre realizáveis no plano real.
VIOLÊNCIA URBANA E LAZER
Violência costuma ser sinônimo do cotidiano dos grandes centros, mas, surpreendentemente, o número de mortes violentas é significativo no tempo livre. Pelo menos é o que mostra o "Mapa da violência" na cidade de São Paulo, uma das maiores do mundo. Segundo os dados desse levantamento, a população da periferia sofre mais com as mortes por arma de fogo. Há um perfil para os assassinados: são indivíduos do sexo masculino, menores de 30 anos. Os dias mais violentos, quando ocorrem mais homicídios, são sábado e domingo, quando jovens praticam esportes com contato físico ou freqüentam os bares. Essa prática de lazer propicia contendas, por vezes resolvidas em atos impensados de agressão com uso de arma (WAISELFISZ; ATHIAS, 2005).
Por isso, políticas públicas surgem para equacionar esses problemas. Uma medida recente foi determinar fechamento dos bares nos dias e horários quando a violência é maior. Em complemento, aparecem programas de recreação para a população das periferias. O Correio Popular divulga trabalho realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em reportagem do dia 1º de outubro de 2002: "escolas abrem as portas aos finais de semana e reduzem violência" (GUGLIELMINETTI, 2002). A matéria informa que foram pesquisadas 260 escolas em dois estados, onde foram oferecidas atividades físico-esportivas e artísticas aos finais de semana. Dados indicam melhora de 77,8% do aprendizado e os casos de vandalismo tiveram redução em 63%. Diante desses índices é fácil acreditar, com base em Guglielminetti (2002, p. 05), na "tese de que a falta de opções de lazer e cultura é uma das grandes causas dos conflitos que geram violência".
Segundo Gutierrez (2001, p. 114), "a desagregação da estrutura familiar acarreta efeitos perversos nos mais diferentes aspectos da vida social, principalmente nos setores mais baixos da pirâmide econômica". Uma política de lazer bem direcionada poderia incentivar laços de sociabilidade mais solidários. Menor desgaste social representaria menos violências e economia no investimento em segurança, pois há, de fato, esperança entre profissionais e teóricos do lazer que a educação do/no tempo livre das pessoas resulte em atitudes mais conscientes. Essa visão é complementada pelo senso comum, instaurado no meio político, sobre a violência ser reflexo da falta de opções de lazer.
O lazer, esvaziado de sentido, acabou sendo reduzido à mera função compensatória ou preventiva. E, ainda, focar a violência como resultado da falta de diversão camuflaria o peso que o trabalho deveria dividir com as outras esferas da vida (educação, justiça, saúde, lazer) em relação ao problema da violência. Isso sem computar o perigo de reforçar a lógica puritana, vendo no excesso de tempo livre e falta de trabalho a origem dos problemas sociais.
Não deixa de ser paradoxal, a exemplo da vida cotidiana, observar a condenação (por vezes moralista), do lazer das camadas populares com a concomitante realização de programas de recreação orientados à organização de lazeres considerados adequados para esta população. Em acréscimo, percebe-se que o próprio "fornecer" lazer para as camadas carentes da sociedade pode, em última análise, contribuir para o esquecimento do lazer como direito de toda a cidade e não somente como ação estatal de emergência em focos específicos de marginalidade e violência.
Seriam essas iniciativas suficientes para confrontar o tom superficial da vida violenta e sem sentido nos grandes centros? Gilberto Gil traz uma inversão capital da causalidade pobreza-violência para discutirmos a inconsistência daquela visão ingênua e linear sobre lazer como remédio para a violência. Sobre isso, podemos recordar que o lazer é visto como solução para o problema da violência, tanto quanto foi interpretado por muitas décadas como bálsamo para o trabalho. Na música Domingo no Parque5 ocorre um homicídio no qual, contrariando a lógica formal, é a pessoa menos embrutecida quem comete o crime.
É importante ler essa música com o apoio de autores como Elias e Dunning (1992) para os quais a sociedade busca meios de diminuir o risco das pessoas se agredirem. Esse cuidado com a preservação da vida individual seria reflexo da contenção das emoções violentas, intensas e espontâneas ao longo de um processo civilizatório, típico da sociedade urbano-industrial. O lazer moderno seria um momento para permitir às pessoas liberarem as emoções contidas, mas de uma forma invariavelmente controlada. Por isso, o lazer estaria mais para um comportamento mimético.
As atividades miméticas, como aquelas que realizamos quando vamos a um parque de diversões e brincamos de ‘cair de um penhasco’ ou ‘atirar em animais’ existiriam para refrear nossos impulsos anti-sociais, mesmo nos permitindo tensões prazerosas.
Poderiam as tensões do trabalho e da vida social serem disfarçadas também por este caminho civilizatório? A resposta é clara: mesmo havendo um prazer no "descontrole controlado" permitido pela sociedade, há momentos de um efetivo transbordamento dos mecanismos de controle presentes no lazer. Algumas músicas dão conta dessa realidade.
Domingo no parque, de Gilberto Gil, apresenta três personagens - João, José e Juliana -em um parque de diversões. Mas essa atividade de lazer não está desatrelada das outras esferas da vida, em especial do trabalho. José - o rei da brincadeira -trabalha na feira; João -o rei da confusão - na construção. Juliana, cobiçada pelos dois amigos, é vista por José em companhia de João na roda gigante. A estória é concluída com um crime passional.
Na letra da música, elementos como lazer, cotidiano e temperamento parecem conflitar-se e, por vezes, contradizer-se. José, cujas habilidades brincantes são certamente úteis ao negócio, "como sempre no fim de semana, guardou a barraca e sumiu. Foi fazer no domingo um passeio no parque". Até este ponto se imagina que a coerência daria a José os louros da sociabilidade para conquistar Juliana ou mesmo ter uma relação harmoniosa com a vida. João, presumidamente, seria alguém limitado. A vivência de lazer (capoeira) é apenas um mero reforço da brutalidade de seu labor. Hipertrofiado pelo trabalho braçal, João só faz estimular essas qualidades corporais e morais válidas em seu ambiente através de atividades associadas com confusão. Porém, naquele domingo, "João resolveu não brigar". Ao invés de jogar capoeira, saiu apressado e foi namorar Juliana.

É no parque, no domingo à tarde, que o quadro complexo de disposições mostra-se surpreendente em sua resolução. José mata o casal a facadas. O reflexo do crime ocorrido no tempo livre transborda para o mundo do trabalho: "Amanhã não tem feira (ê, José). Não tem mais construção (ê, João)".
Passadas décadas desde que Gilberto Gil apresentou Domingo no parque nos Festivais, essa paradoxal música não perdeu sua atualidade. Aliás, a hodierna realidade só a tem tornado profética. Basta lembrar que, conforme Waiselfisz e Athias (2005), a maior parte das mortes violentas ocorre nos finais de semana e predomina entre jovens do sexo masculino, residentes na periferia, tal qual o João da música. Embora proeminente tal discussão não está presente nos estudos do lazer na proporção devida. Mas a música revela outras facetas sobre a intricada relação lazer-violência-cotidiano que podem ser compreendidas retomando a discussão sobre a função social da cidade.
ANÁLISE TEXTUAL

MÚSICA: “ALEGRIA, ALEGRIA”,
DE CAETANO VELOSO

Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro,
Eu vou.

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas,
Eu vou.

Em caras de presidente,
Em grandes beijos de amor,
Em dentes, pernas, bandeiras,
Bomba e Brigitte Bardot.

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça.
Quem lê tanta notícia?

Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos.

Eu vou
Por que não? E por que não?

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento
Eu vou.

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
Uma canção me consola
Eu vou.

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone,
No coração do Brasil.

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito

Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor.

Eu vou
Por que não? E por que não?

ANÁLISE:
O SUCESSO DA DÉCADA DE 1960
A música Alegria, alegria, de Caetano Veloso é uma dessas canções que se cristalizam no imaginário público como se fosse sem autor definido: de domínio público e, por isso mesmo, eleva o seu compositor à categoria dos grandes autores da música brasileira e, a própria música, à categoria dos clássicos.
Esta letra em questão funcionou como um dos pontos de partida e até síntese do movimento tropicalista ocorrido principalmente na nossa música durante as décadas de 60 e 70, do século passado. O Tropicalismo, movimento sócio-cultural iniciado a partir de 1967, surgiu principalmente na música, mas acabou influenciando toda a cultura nacional, pois retomava basicamente elementos da Antropofagia, do Modernismo Brasileiro, e outros elementos da contra-cultura, da ironia, rebeldia, anarquismo e humor ou terror anárquico.
A paródia, a crítica à esquerda intelectualizada, a não-aceitação de qualquer forma de censura, a sedução dos meios de comunicação de massa, o retrato da realidade urbana e industrial, a exploração do ser humano, tudo isso, todos esses elementos montado com uma colagem de fragmentos do dia-a-dia nas grandes cidades do país, eram, de fato, os princípios norteadores da arte tropicalista.

CONTEXTO HISTÓRICO
O panorama sócio-histórico da época desta canção era de total arrogância direitista. Estávamos em plena Ditadura Militar, especificamente nos “anos de chumbo”, como era chamado o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, conhecido como o mais duro e repressivo do período. Nestes anos, a repressão e a luta armada crescem e uma severa política de censura é colocada em execução. Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes, músicas e outras formas de expressão artística são proibidas. Alguns partidos políticos passaram para a ilegalidade e a UNE (União Nacional dos Estudantes) teve seu prédio incendiado. Muitos professores, intelectuais, artistas, políticos, jornalistas e escritores são investigados, presos, torturados, exilados ou assassinados.
O Regime Militar fora imposto com um grande golpe desde 1964 e, naquele final de década, já havia as revoltas contra esta ditadura. Os estudantes iam às ruas protestar contra um governo ditatorial, que destruía as universidades, deixando-as reféns do sistema de negação do conhecimento, e a população já participava de lutas e passeatas contra o regime militar, mesmo estas sendo proibidas pelos militares.
A cultura importada era alienante, por isso, Caetano usa palavras como Brigitte Bardot, Cardinales (em referencia á atriz ítalo-americana Claudia Cardinale) e coca-cola (maior símbolo do império norte-americano, que financiava os exércitos em toda a América Latina).
Mas, os anos 60 foram a grande década revolucionária: os anos da minissaia, dos hippies, dos homens de cabelos compridos, da pílula anticoncepcional e, consequentemente da revolução feminina e da liberação sexual. Assim como surgiram ídolos impostos e fabricados pela mídia principalmente nos EUA, também surgiram símbolos de uma época que marcaram tanto pela alienação, quanto pela imposição de um comportamento novo ou pela exposição da exploração sofrida pelo ser humano. Neste patamar, aparecem ídolos da cultura pop e líderes sociais e políticos, como os Beatles, Rolling Stones, Jonh Kennedy, Martin Luther King, Fidel Castro e Che Guevara. Também fazem parte deste contexto histórico, a Guerra do Vietnã, a viagem à Lua, feminismo, lutas pelo aborto e pelo divórcio e a prática do amor livre, tendo como expoente principal o festival de Woodstok, que marcou o planeta com o poder de transformação da sociedade pela juventude. No Brasil, era a época dos grandes festivais de música, do ufanismo dos militares e das obras faraônicas erguidas a partir de grandes empréstimos. Os ídolos da música cantavam versões de sucessos norte-americanos ou europeus. A cultura de massa tupiniquim começava a virar produto de exportação.

A MÚSICA E SUA INTENÇÃO
Escrita, musicada e interpretada pelo cantor e compositor Caetano Veloso, em novembro de 1967, “Alegria, alegria” ajudou a criar o estilo hoje intitulado de MPB e deslocou a expressão artística musical brasileira para o cenário da crítica social, em um ativismo político sem precedentes na história de outro tipo de arte no mundo. Graças a isso, Caetano Veloso teve grande parte de sua obra censurada pelo regime militar. Chegou a ser preso, junto com seu parceiro musical e amigo, Gilberto Passos Moreira, o Gilberto Gil, também cantor e compositor baiano e ex-ministro da cultura do Governo Lula. Os dois artistas ficaram exilados em Londres por quase dois anos. Caetano era classificado para o governo no Brasil como “persona nom gratta”, uma expressão latina que corresponderia a mal-agradecido e, por isso, mal-vindo de volta à pátria. Até 1972, quando ambos voltam do exílio.
“Alegria, alegria” chegou a ser tema de novela da Rede Globo (Sem lenço e sem documento, na década de 80), quando o Regime Militar já estava perdendo o seu máximo poder. Na canção, é relatada a opressão sofrida pelo cidadão comum, nas ruas, nos meios de comunicação, em sua cultura nativa, no seu próprio país. A letra denuncia o abuso de poder de forma metafórica “caminhando contra o vento/sem lenço e sem documento”; a violência praticada pelo regime “sem livros e sem fuzil,/ sem fome, sem telefone, no coração do Brasil”; e a precariedade na educação brasileira proporcionada pela ditadura que queria pessoas alienadas: “O sol nas bancas de revista /me enche de alegria e preguiça/quem lê tanta notícia?”.
Podemos pegar como exemplo também de formas alienantes, elementos externos à cultura nacional, como alguns símbolos impostos pelo cinema norte-americano que exportava/exporta seus ídolos como: Cardinale, Brigitte Bardot e a coca-cola, principal imposição comercial da mídia na época.
Para dar exemplos dos desníveis sociais existentes no Brasil e as diferenças regionais, o autor se utiliza de um expediente inovador. Através de comparações aparentemente desconexas e fazendo uso de metáforas, faz a denúncia dos contrastes regionais, sociais ou econômicos, como nos versos: “Eu tomo uma coca-cola,/Ela pensa em casamento”, “Em caras de presidente/em grandes beijos de amor/em dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot.”

INTERTEXTUALIDADE
Ao começar a audição da música ou simplesmente da leitura da letra, é impossível não lembrar dos versos de outra canção dessa época de censura. Trata-se de “Para não dizer que não falei das flores”, do cantor paraibano Geraldo Vandré, também perseguido pelo Governo Militar, que convocava o povo para ir às ruas e lutar contra a ditadura vigente. As duas músicas se iniciam com a palavra “Caminhando” e isso já é um grande motivo para suscitar na população à lembrança da outra. Só depois de Geraldo Vandré ter vencido um grande festival de música com esta canção e, também pelo fato dela ter sido proibida e os discos terem sido destruídos pelo governo, é que Caetano tem sua música Alegria, alegria também proibida. Era comum a destruição ou apreensão de discos ou fitas por parte do governo militar, alguns exemplos são da música Ovelha Negra, de Rita Lee e, mais recentemente, o disco de lançamento da banda de rock carioca Blitz foi censurado em duas faixas, que foram expressamente riscadas dos discos de vinil, em 1981.
Outro compositor que sofreu muitas perseguições da ditadura foi Chico Buarque, que teve inúmeras músicas censuradas ao longo da carreira. No entanto, o cantor e compositor carioca, amigo e contemporâneo de Caetano Veloso, aprendeu a “driblar” a censura por meio do uso de palavras metafóricas, como na música “Apesar de Você”, gravada primeiramente por Clara Nunes, que criticava o governo ditatorial como se fosse uma relação afetiva entre um homem e uma mulher.
“Alegria, alegria” já começa poética desde o título. O que é também característica da obra de Caetano, fazer um certo ritmo nos títulos de suas obras, seja repetindo palavras ou juntando palavras com sons parecidos, produzindo aí uma aliteração. Como nos exemplos: “London, London”, “Podres Poderes”, “Minha Voz, Minha Vida”, “Araçá Azul” ou “Pássaro Proibido”.

CAETANO VELOSO
O mais ilustre filho de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, filho da centenária Dona Canô, Caetano Emanuel Viana Teles Velloso é um caso à parte na complexa teia de sons e poesias que permeiam a música popular brasileira. Ele tem acesso livre a todas as tribos da música atual, pois viaja por todos os estilos e ritmos, passando facilmente do inovador pop ao incontestável brega, com um forte apelo popular. Ao tempo que dá sempre uma nova leitura às músicas que interpreta, compõe melodias nos mais diversos ritmos, inclusive rock leve ou pesado, samba de raiz, romântico comercial, bossa-nova, baião, axé e outros ritmos regionais. É músico, arranjador, produtor, escritor, cineasta, além de cantor e compositor. Por isso, é considerado um dos grandes intelectuais da contemporaneidade.
Compositor virtuose de pérolas da música romântica como Você é linda, Quero ficar com você, Nosso Estranho Amor, O Leãozinho e Menino do Rio, também é autor de clássicos da MPB engajada, panfletária ou de desbunde, como: Odara, Sampa, Podres Poderes, Tropicália, Fora da Ordem, Haiti e Língua. Foi interpretado por todas as grandes intérpretes da música brasileira da atualidade, começando pela sua irmã Maria Bethânia, a amiga-irmã Gal Costa, a também conterrânea Simone, Zizi Possi, Elba Ramalho, Elza Soares, Leila Pinheiro, Ângela Ro Ro, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Daniela Mercury, Fafá de Belém, Cássia Eller, Alcione, Rita Lee, Baby do Brasil, Marina Lima e Beth Carvalho, entre outras. Também teve músicas gravadas por cantores como Milton Nascimento, Chico Buarque, Roberto Carlos, Tom Jobim, Gilberto Gil, João Gilberto, Paulo Ricardo, Emílio Santiago, Jorge Bem Jor e muitos outros grandes artistas da MPB.
Quase sempre compõe sozinho letra e melodia, mas também fez várias músicas em parceria, principalmente com Gilberto Gil, Chico Buarque, Jorge Mautner, Jorge Bem Jor e Lulu Santos. Atualmente, encontra-se relativamente afastado de estúdios e televisão. No entanto, apresenta shows regularmente por todo o país e no exterior, principalmente nos Estados Unidos e Europa. Tem cerca de duas mil músicas compostas e pelo menos trinta discos lançados, em uma carreira de mais de 40 anos.
Caetano também se aventurou na literatura, lançando dois livros autobiográficos em que relata muito da história sócio-cultural do Brasil e, no cinema, produziu um filme que não teve muita aceitação do público. Fez muitas trilhas sonoras tanto para filmes, quanto para produções de TV, novelas e minisséries.
Se “Alegria, alegria” não é sua obra mais famosa ou mais lembrada pelos seus fãs, é, pelo menos a mais emblemática de uma época que jamais será esquecida da História do Brasil. E Caetano Veloso foi o grande divulgador deste período de grande revolução popular e de tanta efervescência cultural.

ANÁLISE ESTILÍSTICA:
As figuras de som predominam na letra da música de Caetano Veloso, pois o ritmo é constante, quebrado por palavras e/ou expressões como “eu vou”, no final de cada estrofe. A aliteração está presente tanto na repetição de sons consonantais (consonância) quanto de sons vocálicos (assonâncias), como nos exemplos: “Entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil.”: repetição do som do fonema /f/. Nos versos “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”, percebe-se a presença do fonema /k/. Também nos versos “entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil”, percebe-se a presença dos sons vocálicos de /em/. O que se repete também nos versos “sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”.
A presença de outras figuras de linguagem também é predominante no poema, principalmente a metáfora, como nos exemplos: “Em Cardinales bonitas” ou “Caminhando contra o vento”, que tem o valor semântico de “nadando contra a corrente”, uma expressão popular que significa “estar contra”, no caso, lutar contra a Ditadura Militar. No contexto do momento histórico vivido pelo autor na época do Regime Militar, a expressão “caminhando contra o vento” vem reforçar a idéia central do texto: ser do contra, lutar contra as forças armadas pelo regime ditatorial, promover a união da população contra o governo imposto de forma indireta e arbitrária. Idéia corroborada pelo descumprimento das regras gramaticais da língua padrão, como no exemplo: “Me enche de alegria...”, em que a frase é iniciada pelo pronome oblíquo ME.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O Olho Mágico do Amor
(O Olho Mágico do Amor, Brasil, 1981)

O filme trazia na capa a bela e jovem atriz Carla Camurati.


SINOPSE

Vera é uma bela jovem à procura de um emprego. Através de um anúncio, procura a Sociedade Paulista de Amigos da Ornitologia para candidatar-se ao cargo de secretária. Recebida por Prolíxenes, o presidente da Sociedade, é imediatamente contratada.
Embora gostando do trabalho, a presença, na sala que divide com Prolíxenes, de vários pássaros empalhados, assim como, de uma série de quadros pendurados nas paredes, a incomoda bastante. Certo dia, ao retirar um dos quadros da parede, verifica com surpresa que, por trás do mesmo, há um grande furo, através do qual, vê-se todo o movimento do quarto de Penélope, uma prostituta.
Como Prolíxenes está quase sempre ausente, ela passa a bisbilhotar com freqüência as atividades de Penélope, observando as mais diferentes e esquisitas figuras que passam por sua cama. Enquanto observa, excita-se e acaricia seu próprio corpo. Passando a chegar mais tarde em casa, à noite tem sonhos eróticos. Marcos, seu namorado, a procura, mas ela não sente mais nada por ele.

Esse filme traça uma analogia com o filme francês "A Bela da Tarde", que fez bastante sucesso e causou grande polêmica.

Uma tórrida cena de amor do filme.




Em sua nova rotina, a jovem assiste às mais diversas situações: Penélope e Átila drogam-se e se divertem no quarto; após estar com a prostituta, Prolíxenes chega ao escritório e tenta tocar o seu corpo, mas ela não permite.
Certo dia, ao sair tarde do trabalho, é assaltada e estuprada por Átila em plena rua. Traumatizada, falta três dias ao trabalho e, ao voltar, resolve pedir demissão. Em casa, a mãe reclama por ela estar desempregada e sem procurar um novo emprego. Certa noite, ao se deitar, tem um sonho erótico no qual ela se vê no papel de Penélope.
No dia seguinte, vai ao escritório de Prolíxenes onde, após dar uma olhadela pelo buraco, vai até a janela, de onde vê Átila passando pela rua. Ela joga um objeto pesado em sua cabeça e ele cai no chão. Em seguida, ela desce, pega o casaco que ele estava usando, veste-o e vai até o quarto de Penélope. As duas finalmente se encontram, ocasião em que se beijam, trocam carícias e transam
.


Críticas
Embora "O Olho Mágico do Amor" tenha sido indicado ao Kikito de Ouro de Melhor Filme do Festival de Gramado, não chega a ser um bom filme. Escrito e dirigido por José Antônio Garcia e Ícaro Martins, o filme tem um roteiro simples, razoavelmente estruturado.
Seu ritmo chega às vezes a ser demasiadamente lento. As cenas de 'voyeurismo' são bastante repetitivas e acabam se tornando um pouco massante para o espectador do filme.

Trata-se de um filme de baixo orçamento com forte apelo erótico.
No elenco, os destaques são as boas atuações de Carla Camurati, ganhadora de um Kikito de Ouro, e de Tânia Alves,
no papel da prostituta Penélope.

Assista a seguir um clipe de imagens do filme "O Olho Mágico do Amor", com a atriz e cantora Tânia Alves, ao som da música "Lenda do Pégaso", na voz de Tânia e Jorge Mautner.



Diretor(es): José Antonio Garcia , Ícaro Martins

Roteirista(s): José Antonio Garcia, Ícaro Martins
Elenco: Tito Alencastro, Tânia Alves, Hércules Barbosa, Arrigo Barnabé, Carla Camurati, Casagrande, Luiz Felipe, Luis Roberto Galizia, José Antonio Garcia, Ênio Gonçalves, Maria Helena, Ismael Ivo, Nelson Jacobina, Leonor Lambertini, Sofia Loren

Assista abaixo a apoteótica cena final do filme, onde as atrizes Carla Camurati e Tânia Alves contracenam.


terça-feira, 22 de setembro de 2009

Chapeuzinho Vermelho e o lobo mau

Chapeuzinho vermelho - análise semiótica
Uma linguagem sedutora do jogo
Assista abaixo videos com a história de Chapeuzinho vermelho numa versão brasileira de um disquinho para crianças
Parte 1

Parte 2




Por Calina M. Fujimura (UERJ)
Aqui vemos a imagem de Chapeuzinho ligada ao desejo e à libído

A pesquisadora Calina M. Fujimura estabeleceu uma analogia entre a construção da narrativa do conto “Chapeuzinho Vermelho” e o jogo, nas versões dos camponeses, de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm para o conto. Conforme a noção de símbolo[1], estes se constituem em imagens pictóricas ou em palavras com a capacidade de substituir idéias, um sentimento ou um pensamento. Com o intuito de basear o estudo simbólico do conto “Chapeuzinho Vermelho”, será utilizado o Dicionário de símbolos, juntamente com as interpretações psicanalíticas de Erich Fromm e Bruno Bettelheim, para o conto em questão.


De acordo com a concepção de jogo, deve-se partir da premissa de que este só existe no jogar do jogador, sendo a ele inerente o movimento. Deste modo é preciso, antes, conhecer quem são os jogadores desta partida e como jogam, para desta forma entender qual a pertinência dos símbolos dentro desta proposta de trabalho.

Fantasia sexual de Chapeuzinho vermelho


Nas três versões estudadas pode ser vista a figura do Lobo como metáfora do homem sedutor, de forma velada ou direta. Porém, o que de imediato não se pode perceber é o conteúdo simbólico contido em tal personagem. Recorrendo ao Dicionário de símbolos, diversos significados do símbolo “lobo” são encontrados. No entanto, um chama atenção para o dado contexto sedutor – o “lobo” como um símbolo devorador. O “lobo”, a partir desta interpretação, pode ser comparado a Cronos, Deus grego que devorava seus filhos. Cronos, assim, passa a ser confundido com Chronos – o tempo – mas um tempo que devora a juventude de homens e objetos. Fromm, em seu estudo A linguagem esquecida, ressalta a imagem devoradora do ato sexual tal qual Cronos devorava seus filhos e o tempo à vida, a relação sexual é encarada como o devorar da fêmea pelo macho. E é desta característica devoradora que se poderá compreender o significado simbólico do embate entre Chapeuzinho Vermelho e o Lobo.
Relatada sua possível simbologia, pode-se agora entender quem é este jogador que deseja devorar. O Lobo de “Chapeuzinho Vermelho” é um jogador que não dá pistas das suas jogadas, como faz Chapeuzinho, ao contrário, ele as esconde atrás de sua falsa cordialidade. O Lobo pode ser representado pelo jogador trapaceador visto no texto de Duflo, malicioso, ele é o ator que fala e seduz detrás da máscara. Estas características do perfil do jogador ficam claras nas passagens em que o Lobo procura tirar vantagem, seja no caminho que leva à casa da avó, por suas palavras sedutoras que a convidam a deixar de ser tão séria, ou ao se disfarçar de avó para enganar Chapeuzinho:
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera. (DARNTON, 2001: 21 e 22)
Se este jogador se oculta atrás da imagem de um Lobo cortês, porém faminto, o seu prato principal constará, justamente, da “inocente” menina, conhecida nas versões de Charles Perrault e na dos Irmãos Grimm como Chapeuzinho Vermelho. Perrault é quem dá à versão dos camponeses este nome à menina que passa a ser também título desta história. Este insere a figura do capuz vermelho que origina o nome “Chapeuzinho Vermelho” tão familiar aos leitores, e que torna mais sugestivas as intenções da menina. Nome que os Grimm mantém em sua narrativa, com um ligeiro acréscimo do chapéu ser de veludo.
O capuz vermelho que acompanha a menina nas versões de Perrault e na dos Grimm, surge como símbolo da cor do sangue, da menstruação, cor da alma, da libido e do coração. A partir disto, tem-se a visão da relação simbólica entre o Lobo e Chapeuzinho. Ao ser observada a estreita ligação entre “lobo” e Chronos, pode-se entender que talvez este Lobo do conto seja o tempo devorador a destruir a fase menina de Chapeuzinho, já que nela se desperta a sua nova condição marcada pela menstruação e o desabrochar da libido; a juventude e os desejos amorosos passam a envolvê-la nesta transformação.

Chapeuzinho vermelho em propaganda de bebida alcoólica.

Para Fromm, o simbolismo do capuz vermelho é muito sugestivo como observado em suas palavras: “O ‘chapeuzinho vermelho de veludo’ é um símbolo de menstruação. A menina de cujas aventuras nos falam tornou-se adulta e vê-se agora defrontada com o problema do sexo.” (FROMM, 1973: 175)

Chapeuzinho vermelho curtindo com o lobo mau em uma motocicleta.

Neste contexto do capuz vermelho, Bruno Bettelheim traz uma visão sobre a função da avó de Chapeuzinho, que à primeira vista, aparece sem muita importância dentro da narrativa. Para Bettelheim, a avó de Chapeuzinho transmite de forma inconsciente todo o seu conhecimento e experiência sexual na forma do capuz vermelho dado por ela, pois a cor deste, revela como significado simbólico oculto a pulsão dos impulsos sexuais presentes no ser humano. Como diz Bettelheim:
(...) é fatal para a jovem a mulher mais velha abdicar de seus próprios atrativos para os homens e transferi-los para a filha, dando-lhe uma capa vermelha tão atraente.
Em “Chapeuzinho Vermelho”, tanto no título como no nome da menina, enfatiza-se a cor vermelha, que ela usa declaradamente. O vermelho é a cor que significa as emoções violentas, incluindo as sexuais. O capuz de veludo vermelho que a avó dá para Chapeuzinho pode então ser encarado como o símbolo de uma transferência prematura da atração sexual (...). (BETTELHEIM, 2004: 209)
Na versão dos camponeses a questão do capuz vermelho não é citada, encontra-se apenas a figura de uma menina que deixa sua casa para encontrar a avó. Então como a transferência da sexualidade é feita nesta história? Ao que tudo indica é também através da avó. Como o Lobo ao chegar à casa da avó não a devora e sim a mata, despejando seu sangue em uma garrafa e cortando seu corpo em fatias, quando Chapeuzinho finalmente chega ao seu destino já encontra o Lobo disfarçado de sua avó, recomendando que ela se servisse da carne e do vinho que estavam na copa. Servindo-se da carne e do vinho, um gato lá presente sentencia: “Comer da carne e beber do sangue de sua avó!” (DARNTON, 2001: 21e 22)
Partindo do significado simbólico do gato como animal que carrega a sagacidade, engenhosidade e portador do dom da clarividência, tem-se adiantado o futuro de Chapeuzinho, nas palavras do gato, como “menina perdida”. Comendo as partes do corpo (a carne) e bebendo do sangue (o vinho) da avó, os símbolos ocultos de transferência de sexualidade passam a conotar a fragilidade da carne perante o pecado, dentre eles o impulso sexual incontrolável, e se vê no vinho um símbolo do conhecimento e de iniciação. Assim o ato canibal de Chapeuzinho é entendido como o tomar do conhecimento da avó, para iniciação sexual. Não se tem, desta forma, a passagem da sexualidade por meio do capuz vermelho, mas se pode tentar encontrá-la de forma encoberta nos seus símbolos.
Para finalmente descobrir-se o perfil desta jogadora, deve-se primeiro observar as pistas deixadas por Chapeuzinho a fim de se entender o jogo velado desta “inocente” jogadora.
Nas versões de Perrault e na dos Irmãos Grimm, Chapeuzinho ao indicar o caminho para casa de sua avó, praticamente se entrega ao Lobo. O Lobo que se apresenta na forma de um jogador astuto, vale-se das suas artimanhas para tomar o caminho mais curto ou adquirir certa vantagem na distração de Chapeuzinho. Será neste caminhar pela “estrada afora” que esta irá dar as pistas que se reunirão ao capuz vermelho para formar a grande interpretação simbólica do prenúncio do final deste jogo.
Se a sexualidade é passada pela avó à Chapeuzinho através do capuz vermelho, a presença do desejo de deixar-se envolver por esse “lobo” pode também ser vista em alguns signos espalhados pelo breve período de distração pelo qual passa a personagem. Em Perrault, Chapeuzinho distrai-se colhendo as avelãs no bosque, símbolo da fertilidade e da luxúria, correndo atrás de borboletas, símbolo de metamorfose, e colhendo flores, símbolo da passividade. Conhecidos os símbolos, o entendimento deste percurso de passividade pode ser compreendido.
O movimento passivo do jogar de Chapeuzinho só se mostra ao se perceber que ela se deixa seduzir pelas palavras do Lobo, tomando o caminho mais longo até à casa da avó por sugestão do Lobo. Suas intenções surgem ocultas detrás de símbolos como as avelãs que passam a reiterar a idéia do vermelho menstruação como sinal biológico de fertilidade, é a menina transformando-se em mulher em um processo de metamorfose, tal qual sofrem as borboletas.


Versão infantil da histórinha.

A mesma compreensão simbólica pode ser encontrada na história dos Grimm, em que este Lobo malicioso a convida a deixar de ser tão séria, e que Chapeuzinho, de maneira semelhante, aceita a proposta sem se lembrar da advertência dada por sua mãe, na qual pedia que Chapeuzinho andasse direito pelo caminho para não tropeçar e, deste modo, não cair quebrando a garrafa de vinho que levava para sua avó.
Para Fromm, a advertência consiste em alertar a menina da possível perda de sua pureza, ao passo que quebrando a garrafa (símbolo da virgindade), e se desviando do caminho, Chapeuzinho poderia assim descobrir o que realmente há nos “cantos”, que não deveria ser revelado.
Duflo, em seu trabalho, descreve a freqüência com que o jogo era praticado, referia-se a “uma sociedade do jogo”, em que este era muito comum apesar das proibições. No entanto, como diz Duflo “todo lugar onde o jogo é proibido, essa proibição é transgredida” (DUFLO, 1999: 47), consistindo em um instigador e gerador de um aumento no prazer dos jogadores, tal qual Chapeuzinho que burla a advertência dada e as regras de menina pura para ir ao encontro do Lobo. Mesmo tendo consciência do dever de visitar sua avó doente, Chapeuzinho aceita veladamente o jogo da figura sedutora masculina, para aos poucos deixar ser devorada por meio de uma simbologia que sussurra o aflorar do desejo sexual. Ter-se-á, desta forma, o grande embate agônico entre estes jogadores, que em um jogo de perguntas e respostas ditam o final desta partida.
De acordo com Iser, em o “Jogo do texto”, tem-se a adoção do sentido figurativo do significante em detrimento do sentido real deste, com o intuito de gerar a característica ficcional do texto, o como se intencionando dizer o que foi dito. “Em Chapeuzinho Vermelho”, fica claro o jogo com a palavra a fim de fazê-la ter um significado primeiro superficial, no qual, no caso do Lobo, pode remeter, por exemplo, a uma perseguição, a uma caça, um animal atrás de sua presa – Chapeuzinho. Este Lobo, assim como os seus outros da selva, antes, rondam sua vítima, armam o seu bote para apanhá-la desprevenida, e cruelmente conseguem devorar rapidamente sua refeição. Mas um Lobo que se veste de avó, um Lobo conversando com Chapeuzinho, algo está estranho.
Ao longo de todas as narrativas do conto, o jogo com o “significante fraturado”, ao qual se refere Iser, toma forma na figura do Lobo. O protótipo do Lobo é interessante à história por ele ser um devorador da natureza, um elemento conhecido dentro da vida dos camponeses da França do século XVIII. Como diz Iser: “O significante, portanto, denota algo mas, ao mesmo tempo, nega seu uso denotativo, sem que abandone o que designava na primeira instância”. (ISER, 1979: 110), assim como nas três versões trabalhadas, a dualidade do Lobo como lobo e deste como homem é de suma importância para a aproximação do homem com seu lado sexual “devorador” e “selvagem”. Como bem ressalta Vilém Flusser, em Da religiosidade, “(...) embora tenham os lenhadores exterminado o lobo, no curso dos últimos dez mil anos, nada tenha perdido o Lobo do seu terror primitivo” (FLUSSER, 2002: 165), de animal predador e da imagem sedutora apresentada ao longo do texto.
Trilhando as pistas simbólicas deixadas por Chapeuzinho durante o seu jogo, o momento do duelo final é chegado; Lobo e Chapeuzinho encontram-se juntos em um mesmo tabuleiro, com táticas diferentes, mas com o fim já esperado.

A "inocente" chapeuzinho observada pelo matreiro lobo mau.


Em meio ao espanto, a “inocente” menina joga com suas constatações interessadas a respeito das diferenças que avista no corpo desta avó-lobo, no qual orelhas, olhos, mãos e boca se tornam tão grandes, e por fim vão moldando a forma de um corpo masculino bem mais imponente que o frágil porte da avó, aproximando, desta forma, as características do lobo as do homem. A versão dos camponeses traz além deste breve diálogo de reconhecimento do corpo masculino, uma prévia do que está por acontecer. Antes deste grande embate Chapeuzinho questiona ao Lobo o destino de suas roupas, e ao longo deste processo, o Lobo repete a mesma sentença: “– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.” (DARNTON, 2001: 21 e 22). O fogo como símbolo de iniciação, leva o leitor a entender o jogo do desejo masculino e a possível conseqüência das insinuações de Chapeuzinho.
Assim, do lado inverso, o Lobo responde ao diálogo travado de uma maneira breve, seguindo os passos de sua oponente, e depois de respondida a finalidade daquela boca tão grande, não se tem mais respostas, pois neste momento, Chapeuzinho já tinha sido devorada. Em um diálogo que no nível do significante este denota a suposta morte de Chapeuzinho ao ser devorada pelo Lobo, dentro da idéia de “significante fraturado”, de Iser, este passa a carregar a concepção figurada do ato sexual.
Dentro do diálogo travado entre Chapeuzinho e o Lobo, agon surge marcada fortemente como característica desta narrativa que estabelece sua moral através do castigo que Chapeuzinho sofre ao se descuidar “saindo do caminho” e sendo assim devorada. Segundo Iser, agon consiste em uma estratégia de jogo na qual o texto é centrado em normas e valores conflitivos, sendo que este debate busca envolver “uma decisão a ser tomada pelo leitor em relação a estes valores contrários, que se mostram internamente em colisão” (ISER, 1979: 113). O conflito entre norma e desejo aparecem como forma de reflexão ao leitor em “Chapeuzinho Vermelho”, a moral de não se desviar do caminho às meninas é clara no texto, assim como a punição de Chapeuzinho por sua escolha é dada quando o Lobo a devora, é um processo em que o leitor é levado a questionar-se, automaticamente, a respeito de suas decisões impulsivas e das ordens.
A atração pela figura masculina e a curiosidade em conhecê-la impelem Chapeuzinho a aceitar a partida proposta pelo Lobo, mesmo sabendo que sua derrota seria necessária para sua vitória. O Lobo a devorou jogando de acordo com as cartas que ao longo do texto por ela foram dadas. O diálogo que antecede o final apenas representa o ápice destes elementos simbólicos que se sucederam na história, realmente, vê-se que o fim estava mesmo no começo, como disse Beckett. Pode-se dizer que tanto Chapeuzinho como o Lobo venceram a partida: uma foi devorada, tal qual tinha sugerido desejar, e o outro devorou, como ditava sua “fome”. Empatou.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
DUFLO, Colas. O jogo: de Pascal a Schiller. Trad. Francisco Settineri e Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
FLUSSER, Vilém. “Do poder da língua portuguesa”. In: Da religiosidade. São Paulo: Escrituras, 2002.
FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Trad. Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos de fadas. Trad. David Jardim Jr. Belo Horizonte: Vila Rica, 1994.ISER,Wolfgang. "O Jogo do Texto". In: COSTA LIMA, Luiz (coord. e trad.). A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: DCL, 2003.
PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Trad. De Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.


[1] De acordo com o estudo de Jung sobre as raízes da simbologia presente nos contos de fadas e mitos, Nelly Novaes Coelho, em O conto de fadas, refere-se à existência de um “fundo psíquico comum e inconsciente” gerador de arquétipos, os quais dão origem a “impulsos psíquicos comuns a todos os homens”, ou a “imagens” capazes de tomar a forma semelhante de “emoções, fantasias, medos etc.” criadas por “fenômenos da natureza ou por experiências existenciais decisivas ( com a mãe, com as relações homem-mulher, com o confronto de forças desiguais ou injustiça etc.)”. (COELHO, 2003:116)

fonte http://www.filologia.org.br/